20 de mar. de 2011

Três contos curtos de Nilto Maciel

Trem-fantasma
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O maquinista, logo após o desastre, deu um grito, levou as mãos à cabeça, pôs-se a chorar e recostou-se a um canto da parede, sentando-se. Descuido? Imprudência? A locomotiva partiu da estação primeira já em alta velocidade e, num segundo, alcançou a segunda, a terceira, feito bala, apitando, sem parar em nenhuma estação. Quando o maquinista percebeu o perigo, não havia mais tempo para frear o trem. O precipício abria-se à sua frente, profundo, mortal. O homenzinho fez careta, arregalou os olhos: os vagões resvalaram, despedaçando-se no fundo do abismo. "Ó meu Deus!" Porém, havia um consolo: nenhum passageiro havia subido aos vagonetes. E ajudantes ele nunca teve. Assim, nada de vítimas. Mais sossegado, enxugou as lágrimas e engatinhou até o primeiro pedaço do trem. Pôs-se a juntar um a um os restos do veículo. Olhou para cima, para a grande mesa da sala, onde o desastre teve início.
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O menino e o lobo
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Da janela de casa, avistou um menino, à beira do lago, o silêncio da noite. Um lobo se abeirou das águas, olhou para o céu e venerou a Lua. Sedento, abaixou a cabeça e bebeu o claro círculo. Súbito o mundo escurejou. Atônito, o animal se contorceu, gemeu, se pôs a expedir clarões e se arrojou às águas. Banhou-se pelo resto da noite, até que o Sol surgiu enorme, límpido, feito um disco d’ouro. No lago o lobo ainda se debatia, como se garras o puxassem para o fundo. Tentava emergir, respirar, e mais se afogava. Voltava à tona, avistava nesgas de luz e suplicava ao Sol socorro. Em vão, porque nuvens de chuva se ajuntavam. Desesperava-se, sem forças já. Iniciava-se a chuva. O lago se revolvia, inflava. Peixes em festa saltavam em todas as direções. As águas se avolumavam mais e mais. O lago avançava sobre as terras e se confundia com riachos, rios, correntezas. O dilúvio, talvez. O mundo escurecia, repleto de águas. O menino, debruçado à janela, observava tudo com apreensão. Quando as águas desceriam para o mar? Quando o Sol voltaria a aquecer a Terra? Quando reveria as árvores, os animais, as pessoas, o chão? Aos poucos, porém, a chuva se abrandava, as nuvens sumiram, as águas baixaram e o lobo reapareceu à beira do lago, a uivar feito um deus. A Lua brilhava de novo. O animal se abeirou do lago, olhou para o alto e venerou o disco dourado. O menino transpôs a janela, correu na direção do lago e espantou o lobo. À beira da água, avistou a Lua a tremeluzir. Sedento, abaixou-se e bebeu feito um lobo. Súbito o mundo se cobriu de trevas. Apavorado, o menino sentiu náuseas. Como se tivesse engolido todo o fel do mundo. Contorceu-se e se pôs a vomitar restos de luas. No alto da colina, o lobo olhava para ele e o lago, como se entendesse de dores e desejos, como se pudesse impedir a tempestade e o desespero.
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Caça e caçador
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dias e dias seguidos Saul perseguiu com os olhos a pequena Raquel. Seguiu-lhe os passos pelas ruas. Quando se aproximava dela, havia sempre alguém por perto. Dava meia-volta e se metia na próxima rua transversal. No entanto, sabia onde ela morava. E quase todo dia se postava na esquina, olho na casa dela. Aparecia alguém à janela. Ele se zangava e se punha em retirada. Urgia apressar o bote. Talvez já o conhecessem naquela rua. Já reconhecia até o sorveteiro que empurrava um carrinho. Tanta sede, pensou em comprar um picolé. Não, o homem puxaria conversa, olharia para seu rosto.
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Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul finalmente conseguiu saciar o desejo. Horas depois a polícia saiu no encalço do assassino, a multidão aos gritos, armada de paus e pedras. Saul, contudo, andava longe do local do crime. E assim andou por longos anos.
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Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul terminou seus dias como animal pequeno nas garras de uma fera. Numa noite de bebedeira discutiu com outro homem, de nome ignorado. Saul não conseguiu se livrar do ataque e o outro desferiu nele diversas facadas. Antes de morrer, se disse arrependido do crime cometido contra a menina e sua alma voou até a presença de Deus. No mesmo instante a alminha de Raquel se aproximou do Supremo. Por que Saul se achava, se a estuprou e matou? Ora, pequena, ele se arrependeu de tudo. Além do mais, eu quis assim. Saul sorriu e caminhou para a menina, que tremeu e quis chorar. O Todo-Poderoso a tranquilizou. Não tivesse medo. Saul não lhe faria mal. “Aqui não há pecado; não há caça nem caçador”.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Formou-se em Direito pela UFC. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Editor da revista Literatura desde 91. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais. Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Publicou oito volumes de contos, oito romances, um conjunto de poemas e dois ensaios sobre o conto no Ceará.