27 de mar. de 2011

A dança


Por Geraldo Lima 
 
O carro-forte chegou da mesma maneira que chegava sempre ao principiar a noite: sol posto, ele apontava lá na curva, amarelo, às vezes cinza, couraça à prova de anseios delinquentes, duas (ou três?) janelinhas de vidrovidro, aquela segurança toda, e os caras lá dentro, armados,     prontos para defender a riqueza alheia. Ali, estacionado, o carro-forte, atrás dos outros carros, já na posição de fuga, estratégico, antecipando-se ao perigo, à delinquência mais súbita.
           
Súbita, também, a decisão dele. Um gesto que se erguera como que do nada. Do nada que havia nele. Do protonada. Da rotina que culminava ali, ao escurecer: uma hora estacionado, esperando a filha retornar da aula de balé. Segunda, quarta e sexta, impreterivelmente.

O sonho de ver a menina emoldurada num quadro bem clássico: dentro das sapatilhas, os pezinhos delicados, e o corpinho leve, sadio, entregue aos movimentos do Lago dos Cisnes. As mãos do bailarino cingindo sua cinturinha de anjo. Dance, minha filha, dance para o amanhã, para o entardecer rubro lá para as bandas da Fercal.

Segunda, quarta e sexta, uma hora inteira lendo um resto de jornal, uma revista da semana passada, um livro interminável, uma vida interminável, uma noite que se anunciava também interminável. Dormir, acordar, erguer-se ainda que contra a vontade de não se erguer: segunda, quarta e sexta. Até aquele entardecer, quase-escurecer. Um ponto final em tudo, assim, subitamente.

Os dois vigilantes saltaram do carro-forte: um levava o malote vazio, e o outro, atento, mantinha a mão colada ao coldre. Pela primeira vez ele se detinha a olhá-los. Olhava talvez para os seus algozes: dois homens dentro dum uniforme exageradamente marrom. Pardos, ambos, assim mesmo: como nas certidões de nascimento mais antigas. Pardos, e adentraram a loja de eletrodomésticos, de móveis populares, em busca do lucro, da mais-valia. Assim mesmo: armados, dispostos a tudo. Mirou-os bem, pelas costas, e subitamente decidiu.

O carro-forte, amarelo, o número 183 pintado na frente e nas laterais. Um número qualquer, um carro qualquer, uma vida qualquer. O motorista ficara lá na cabina, na penumbra, na dele. Os outros, lá dentro da loja, demorando, demorando. Se a filha apontasse lá no beco, ele teria de desistir de tudo. Só a presença dela o faria recuar: sua presença emoldurada por uma inocência clássica, refinada, quase-aristocrática, imune ao tempo que se deteriora. Filha, dance para o ocaso paterno, dance para todos os entardeceres, crias deste entardecer.

 Fixou as derradeiras cenas daquele crepúsculo: pelo retrovisor viu, às suas costas, a autopeça já fechada; a farmácia, logo em frente, ainda aberta. Na calçada, assim do lado esquerdo, os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, roupa branca e preta diante da indiferença divina. Alguns transeuntes: ninguém conhecido. Num Corcel velho, creme, ao seu lado, um senhor com uma revista: leitura atenta, interminável. Um rotineiro igual a ele? Irmão de rotina, vamos romper a película deste tempo gasto? Não seremos nada, nada de fantástico acontecendo em nossas vidas. Vamos, meu amigo! O outro, no entanto, não o escutava. Já havia passado da idade de cometer loucuras? Um homem tranquilo, resignado, certamente.

Nisso os dois vigilantes cresceram lá no fundo da loja, caminhando seguros por entre os televisores, embaixo dos cartazes que, do alto, apregoavam uma promoção imperdível, e já estavam perto das bicicletas quando ele segurou firme o cabo do revólver: macio cabo de madrepérola, suave contato da morte, revólver-do-acaso.  Achara-o caído ao lado do meio-fio, há sete dias, depois que um carro, desgovernado, capotou no balão da Quadra 14.  A beleza do cabo de madrepérola o fascinou. Durante esses sete dias, a arma não saiu do porta-luvas. Estivera lá como que esquecida, e ele, antes disso, jamais havia cogitado fazer uso de uma arma de fogo. Tampouco havia pensado naquela arma como um objeto útil. E haveria alguma utilidade naquilo que ele estava disposto a fazer? Ele não pretendia provar nada. Se eles lhe entregassem o malote com o dinheiro, nem saberia o que fazer com ele. Não havia nada de concreto em sua mente. Nem mesmo planejara para onde fugir. Ia fazer porque algo nele dissera faça, sem dar muitas razões. Faça! E ele fez.

Poderia até ter desistido, não fosse já estar segurando o cabo do revólver. A única possibilidade de que nada daquilo viesse a acontecer, dentro de pouquíssimos segundos, seria a filha apontar lá no início do beco. Deus não quis que fosse assim. Deus ou o diabo, que a gente nem sempre sabe quem guia nossos passos.

Saltou do carro e gritou (ou gritaram de dentro dele): Isto é um assalto! O cara da arma sempre atenta nem cuidou de verificar se tudo aquilo não passava de uma simples brincadeira: fez um giro espetacular e, já meio agachado por detrás do Corcel velho, apontou-lhe a boca da morte. Neófito, ele perdeu preciosos segundos admirando a destreza do vigilante  — foi como se tivesse vendo Billy the Kid ou qualquer outro grande pistoleiro sacando a arma ali, bem à sua frente. Esse instante de pura fascinação selou a sua sorte: os primeiros disparos abriram dois furos no seu corpo, mesmo assim apertou o gatilho. Mas o cara do malote já não estava mais lá. Nada mais estava lá. Foi arremessado para trás assim que uma chuva de balas inundou sua carne — não havia percebido que um dos vigilantes ficara montando guarda enquanto os outros recolhiam a grana.

Morrer então era aquilo? Ir morrendo explica-se então assim: o mundo, as lojas, os carros, os fiéis, os vigilantes, tudo vai deixando de ser? Sim: os objetos é que vão deixando de estar diante de nós. E já não restava quase mais nada diante dele. Por fim, agarrou-se ao carro com o restinho de força que ainda lhe restava e, com as vistas já meio tomadas pelo breu eterno, pôde ver, pela última vez, a filha vindo pelo beco, dentro duma moldura de névoa, como se dançasse.


* Do livro A noite dos vagalumes, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF.