8 de dez. de 2010

A day in the life


(ou os efeitos lisérgicos causados pelo show de um beatle)

Por Fábio Flora

Não acordei naquela manhã porque não havia dormido. Tinha apenas fechado os olhos. Desmond e Molly Jones também não, tão ansiosos que estavam à espera de certo blackbird que generosamente pousaria na janela e nos cantaria o caminho. Ob-la-di, ob-la-da, ob-la-di, ob-la-da. E o dia continuou. Ah, e como o dia continuou. Até trazer My Love pertinho. (Uouououououo, My Love, only My Love faz um bem danado to me.

Completo, enfim: um Fab Four com quatro fabulosos corações como morangos forever, diante da long and winding road, a estrada de tijolos amarelos meio desbotados a ser decolada – descolada do solo. O submarino-avião prestes a levantar periscópios e wings, enquanto a Sra. Vandebilt dava as últimas instruções, aquelas que o mundo e eu jamais desejamos entender (um aeromoço, de nome Jet, fazia as mímicas de praxe):

– What’s the use of worrying? What’s the use of hurrying? What’s the use of anything?

– Ho, hey ho, ho, hey ho! Ho, hey ho, ho, hey ho! – respondemos em multidão, embora continuássemos quatro.

– Let’em in – disse a Sra. Vandebilt, que fumava um cigarrinho tipicamente não recomendável para qualquer idade e pulmões. Ainda consegui ler o pedacinho de maço que fugia do seu bolso da camisa: Venus and Mars/Rock show, 1985. Daí em diante só restou uma névoa colorida. Não me lembro de mais nada. Apenas o que veio depois do submarino-avião.

Desacordei novamente, agora num táxi tão branco quanto o álbum dos Beatles – o motorista insano, riscando morros viadutos rodovias sem nos dar tempo de respirar uma vírgula sequer, buzinava que ia ser um star on the screen e talvez um dia ele nos amasse. Beep beep beep beep, yeah.

– Look at all the lonely people! Look at all the lonely people! Where do they all come from? – eu me perguntava, Desmond e Molly Jones se perguntavam, My Love se perguntava.

– Band on the run, band on the run! – gritarolava o taxista apontando para os lados, para o alto, para baixo, para dentro, para fora, de onde vinham todos aqueles day trippers. – See how they run!

Fomos deixados às margens da Nave Mãe; em outromundês, “Lady Madonna”. Entramos na imensa fila de abdução, como os outros. O Sargento Pepper e o Clube dos Corações Solitários lá na frente, gigantescamente helter-skelterianos, fazendo (e lendo) a revista assinada por um paperback writer qualquer.

– We hope you will enjoy the show! – falavam gravíssimo os Lonely Hearts, como trombones de um coro grego que nunca existiu. – Sit back and let evening go! It’s wonderful to be here, it’s certainly a thrill! You’re such a lovely audience, we’d like to take you home with us, we’d love to take you home.

Mas eu estava em casa. Como poucas e boas vezes estive. Estávamos em casa como poucas e boas vezes estivemos. Como poucas e boas vezes aqueles day trippers estiveram. Agora eu sabia, e eles sabiam também, é certo, where do they all belong, a que lugar cada um de nós pertencia. A algum lugar bem próximo da lua cheia.

De lá, minutos-horas depois, veio uma voz familiar, que pedia para fecharmos os olhos. Close your eyes. Bastou ouvi-la para My Love – uouououououo, My Love, only My Love – os abrir lagrimamente felizes, transbordando um sorriso que por pouco não me afogou. Um sorriso de quem via a dream come true.

Sonho acordado, invadido por balões brancos, isqueiros, neons, explosões, fogos de artifício, luzes, pianos, bandolins, guitarras, violões, baterias, submarinos, maçãs, papel picado, bandeiras verdes, amarelas, azuis, vermelhas, os day trippers, everything dancing around, everything jumping and shouting, everything singing it out, everything feeling alright...

– I’ve got a feeling...

– Let it be, My Love, let it be...

A menina alguns degraus acima chamava o namorado com a docilidade histérica dos apaixonados: Paaaaaaul! Paaaaaaul! Paaaaaaul! I love you, yeah, yeah, yeah! E os vizinhos, com a solidariedade barulhenta dos melhores amigos, ajudavam-na na busca: Paul! Paul! Paul! We love you, yeah, yeah, yeah! Não demorou, e o rapaz surgiu no meio da galera, sotaque inglês, jeito de cavalheiro, seguindo a velha máxima de que the love you take is equal to the love you make...

– And I love you, yeah, yeah, yeah!

Aí o mundo, por um instante, parou. Parou e deixou nossos ombros. Something aconteceu. E as palavras desapareceram. Na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na na...

– Hey, Jude... – My Love tentava me acordar, me devolver as palavras. O avião estava quase partindo. Última chamada. Desmond e Molly Jones dormiam o sono dos justíssimos, cintos afivelados, poltronas na posição vertical, celulares e aparelhos eletrônicos desligados. – Hey, Jude...

Abri os olhos – and I’ve just seen her face. Mas não acordei. Não acordei porque não havia dormido. Didn’t get to bed last night. The sun still playing in the morning. I feel the quiet. The thunder. I feel the quiet in the thunder, e My Love – uouououououo, My Love, only My Love – pediu que eu dissesse alguma coisa que não fosse apenas na na na na na...

– Oh, I believe in yesterday.

Fábio Flora é autor de Segundas estórias – uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008). Atualmente, coordena o Setor de Revisão da Editora da UERJ e dá aulas de Língua Portuguesa na rede municipal do Rio de Janeiro. Rabisca no http://ultramuito.blogspot.com/ e no http://twitter.com/fabio_flora.