6 de out. de 2010

A Porta

Por Mauro Siqueira


A desolação da distância que nos separa acaba comigo… por debaixo da porta, acumulam-se contas e cartas. Neste quarto estou tão só como eu estaria se fora dele estivesse. Você foi um descanso que o mundo me deu. Agora, só me resta redescobrir escrevendo. Há tempos eles estão, também, querendo passar por aquela porta e me dobrar em dois, três… sei lá. Aquela porta pintada, branca, que você pintou, lembra? Não, é claro que não lembra – já não te deixam mais lembrar – faz tanto tempo. Mas tanto tempo assim? Quanto é necessário para esquecer. Quanto tempo… está descascando. Emperrada. Sem função. Eu, eu tive de entrar pela janela dessa vez, mas também será a última. Eu tinha que te rever! O nosso quarto, nossa cama, nosso lugar. Vazio. Frio. Morto. A poeira cola na sola do meu pé descalço enquanto passeio por aqui… parece muito maior agora, apesar de completamente tomado por coisas e coisas que não são minhas, não são nossas. Não, você não se lembraria; agora é até solitário. Nos cantos das paredes, as aranhas me observam – sou um tanto grande para ser a presa, mas também não sou quem caça, acho que elas ainda assim querem tentar. Nas sombras, demônios se esgueiram – sinto o hálito podre! Em algum lugar aqui dentro a pia ainda ressoa-se em gotas… Eu não sei por que voltei aqui, não sei. Só sei que sempre é pra cá que fujo. Mesmo sendo dolorido de entrar, sentir primeiro com os pés descalços, parece que tudo se destrói a minha passagem; tudo me machuca, vindo de baixo e subindo até a minha cabeça. Sei o quê eles procuram, e logo vão passar pela porta pintada branca. Não, não vai ser difícil entrar, muitas janelas estão podres, muitos vidros quebrados, palavras pichadas, vermelho, em todos os cômodos – vândalos –, só livraram a cara do nosso quarto, não o macularam ao menos… começa a escurecer e com a noite o frio. Não há nada aqui pra mim, por que vim? De repente um calor. Me desfaço da camisa branca de nove-e-noventa que dão para todos nós e a calça de moletom cinza-sujo que ainda guardava o suor e o cheiro de mijo de outra pessoa e que agora leva o meu; embolo tudo nas mãos, procuro por uma cesta de lixo. Não temos mais. Taco dentro da pia. Fazer fogo não é tão difícil como eu pensei. Vejo tudo queimar, e nas sombras que se agarram nas paredes me vejo nu, como há muito tempo eu não via. Deliberadamente começo a chorar. Por que estou aqui? Me pergunto enquanto, entre berros e espasmos, me contorço no chão imundo da sala; por que não me matei ainda? Ao menos eu teria calma… paz… silêncio. E não teria que lembrar de você. É, o auto-exílio é um possibilidade. Reviro tudo; tudo que um dia reconheci como meu e seu, mas que agora não passam de fantasmas e maus-agouros, do pouco que não pilharam… não encontro nada. Uma faca. Uma gilete. Tesoura. Caco de vidro, espelho, azulejo. Nada para dar cabo de mim. Talvez não seja a hora. Não ainda, mas guardei o projeto no meu bolso. Projeto. Pro – je – to. Quantos não fizemos? Ao menos você fez. De uma missão em comum. De uma vida em comum. De filhos em comum. Eu apenas sacudia a cabeça positivamente. Querendo demonstrar toda alegria que você sentia. Tolos. Somos todos. Tudo é fumaça e espelhos, passe de mágica mambembe! Ficamos maravilhados por pouco tempo, o tempo da própria duração do efeito, depois você esquece e despreza, como tudo; segue em frente, até o próximo espetáculo do circo, até o próximo circo que está de passagem pela cidade, e tudo se repete, e você acredita, num acordo tácito entre mágico e espectador. (eu sou o coelho ou a cartola? E você o que é?) Fumaça e espelhos… Começo sentir falta dos meus remédios, do circo que é me manter fora da vista do mundo, de me manterem “são” enquanto aguardo o Grande Dia… me matar é tolice, é só eu ter paciência, Eles já estão fazendo isso por mim. Onde e quando estou afinal? A cada dia, será mesmo essa a grandeza que devo considerar?, ou será a cada hora? Não sei. É difícil delinear, manter limites. Apenas sei que é numa prisão que vivo… a fuga possível é pela porta, branca, pintada e lá que eles querem entrar, aonde se acumulam contas e cartas por debaixo dela. Me sinto nu. Me sinto nu porque estou nu. Aqui sou apenas eu. Fugido. Em busca de alguém quem já não está mais aqui. E a culpa é só minha, não é? Logo vão descobrir, vão dar falta do meu cheiro de mixo e da camisa de nove-e-noventa – chinelos eu não quis trazer – e virão atrás de mim e vão descobrir o segredo que Eles tanto querem – e que por isso me mantêm aqui. Não sei porque resisto… seria tão mais fácil abrir mão de tudo… Sinto falta dos remédios. Os remédios que eles me dão. Os remédios que me fazem dócil, quase uma samambaia! Remédios para me fazer esquecer. Para me fazer lembrar. Para me deixar são. São como eles são (qualquer hora, alguém vêm e me rega). Eu sei o quê Eles querem de mim. Como uma ovelha à imolação (o olhar fixo no vazio, vendo além; a respiração rápida, repleta de aceitação, consciente da inevitabilidade de reação). Eles querem me dobrar: em dois, três, sei lá. Essas fivelas, tiras de couro cru, laços e lacres, roupas apertadas não me segurarão – no meu quarto de porta pintada, branca, vou queimá-los como sempre faço – essas paredes… dizem que são assim para não me machucar, mas como se elas se interpõem entre nós?  Eu quero o que está do outro lado da porta, lá tenho espaço, lá tenho tudo de volta, lá sou perdoado, lá estou nu – sincero. Só com ela. Não posso deixá-los passar também. Não há espaço para eles – já bastam as aranhas, demônios e fantasmas que permiti. Lá é o que me resta de sanidade. Não esta… fabricada e repleta de nomes latinos, nomes fantasia, tarjas vermelhas e pretas, copyrights e marcas timbradas, em drágeas, pílulas e cápsulas... “paus e pedras machucam meus ossos”, mas essas merdas só me fazem ruir... Sei que nunca estou sozinho, sempre há alguém comigo. No café, no almoço, na janta; quando empurram minha cadeira de rodas até a uma nesga de sol, de sombra de brisa, de acordo com a conveniência; quando me carregam no colo e me dão banho, quando me forçam as necessidades, nunca estou só, no meu sono artificial, no meu delírio, nunca estou só, quando subitamente desperto do meu inferno e transformo o mundo a minha volta num outro inferno, nunca estou só; quando me entopem de drogas e me trancam num leito branco, asséptico e inodoro eu nunca estou só.  Só me resta escrever. Ao menos é o que acredito que faço, quando fujo para cá, de detrás da porta, branca, pintada; não há nada além das paredes. Como eu escrevo? Escrevo com a memória, antes de tudo ter acontecido. Escrevo com o que sobrou da minha consciência, escrevo com o pouco de sanidade que não entornou de mim. E não silencio a dor da dúvida Deles (e minha): matei ou não matei?

E assim como eu nunca terão a resposta.
(Tão presos atrás de uma porta como eu.)