31 de jul. de 2010

O que seria do azul se todos gostassem de rosa?


Riscou com cuidado um dos últimos palitos de fósforo da caixa, com a mão em concha protegeu a singela chama alaranjada dos ares ao redor e levou-a até o cigarro que desafiava a física, dependurado nos seus lábios. Machado sacudiu a mão para apagar o palito e, ao contrário do hábito, guardou o fósforo gasto novamente na caixa, dando cabo àquele prosaico ritual. (Tio, compra uma rosa?) Ela, do outro lado do bar, nem perto, nem longe, toma uma “coisa” azul – já o havia notado; “Não é todo dia que se vê um macho vestido de seda rosa”. Passou a observá-lo junto dos seus amigos, o cerimonial do cigarro só aumentou seu interesse, “não vou dormir sozinha essa noite”, decidiu.
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Sempre iam àquele bar, sempre escolhiam aquela mesa, sempre pediam muita bebida.

A disparidade das opiniões e a quantidade de álcool na corrente sanguínea não impediam àqueles quatro ou cinco jovens que debatessem questões de alta transcendência, como futebol, mulher e rock’n’roll – ou o último jogo de videogame – com certa dignidade e eloquência. (Tio, compra uma rosa?) Quatro ou cinco porque Machado estava amuado, “essa camisa é ridícula!” E fumava um cigarro atrás do outro e dessa forma não percebia, através do espelho, localizado mais ou menos a sua frente, o reflexo da morena (de uma pela marrom incrível!) sentada no bar que não repousava o olhar senão nele. Foi preciso a intervenção de Severino, o garçom de sempre, bem alinhado de branco e preto, como sempre, dizer, quando lhe trouxe outro maço de cigarros e uma “pinga danada da gota”, que “a garota o olha”. (Tio, compra uma rosa?)

O flerte se iniciou pelo espelho prateado mesmo: sorrisos, olhares enviesados, risos de canto de boca, cruzar de pernas, mãos nos cabelos; Machado, acendendo um outro cigarro, ofereceu-lhe um, erguendo a mão esquerda; ela declinou, mas apontou para o seu copo quase vazio da pinga. Ele riu. Ela riu. (Tio, compra uma rosa?) Os outros rapazes pararam a conversação quando viram “aquilo” parar ao lado da sua mesa e sair com Machado, por um momento se acharam ridículos ao estarem discutindo se um “↑, ↑, ↓, ↓, ←, →, ←, →, xis, xis, bola, quadrado, START”, no controle do videogame, revelaria algum segredo na tela de abertura no jogo da moda. (Tio, compra uma rosa?)

Pegaram uma mesa num canto mais reservado (e perto da saída). “Acho que vou trepar essa noite”, pensou ele antes de sentar. Agora era cara a cara. Seus amigos, de fato, estavam brancos e não tiravam os olhos do casal. Na mesa, os dois conversavam... Alguma disparidade, muito álcool, pouca transcendência de ambas as partes desencantava a ambos – reviram as possibilidades carnais em suas mentes. Enfim, fez-se o silêncio... Não ocorria nada a um ou outro para se dizer, Machado fumava e olhava filosoficamente para o seu cigarro, ela alisava a toalha quadriculada verde e branca... a situação beirava o desconforto, nem mesmo os amigos pareciam mais interessados, até que ela resolveu acabar com aquilo, ele acendia outro cigarro. “Sabe o que me chamou primeiro a atenção em você?” Ela não esperou que ele respondesse, foi logo dizendo a maneira dele acender o cigarro e depois guardar o fósforo – ele ficou rosa. “E sabe o que mais?” “O quê?”, perguntou rindo. “Sua blusa rosa. É linda”. Ele tossiu e bebeu o resto da cachaça – ficou roxo. “Sabe, é muita coragem, ou melhor segurança sua usar uma cami...” “Foi uma aposta que eu perdi. Era isso ou duas caixas de cerveja.” “Ah...” Machado notou o fora que dera e nada vinha a sua cabeça bêbeda. Tinha de pôr de volta nos trilhos aquele trem moreno, caso contrário sua cama seria um lugar branco-gelo aquela noite. “Mas o que seria do rosa se todos gostassem do azul?” “O ditado não é ao contrário?” “Não sei, já estou tonto!” “Eu também!” “Ainda não sei seu nome?”, ela riu, um recomeço?, “O meu é Machado, como o do escritor”. “Não gosto muito do meu...” “E qual é? Galvência? Hermenegilda? Lucrécia? Maura!” Ela gargalhou. “Não... nada tão estranho assim...” Ajeitando os cabelos negros por detrás das orelhas e de cabeça um pouco baixa, no gesto de quem sente vergonha ou pudor diz: “É Rozangela...” “E daí..” “...Rozangela com zê. E sem ‘chapeuzinho’” “?” “Você não entenderia... mas pode me chamar de Rô”. O silêncio se interpôs mais uma vez – sorrisos amarelos, não tinham mais nada para falarem. Então um anjo... “Tio, compra uma?”, a noite toda, toda a noite, de mesa em mesa, bar em bar, a menina de uns nove anos de idade leva junto do peito um balde azul cheio de rosas; com um vestido surrado da mesma cor, e vai oferecendo suas flores. (Nos dias mais quentes, ela vende na praia...) Machado e Rô ficaram olhando aquela menina... a presença da garota pôs o casal numa situação embaraçosa, ambos ainda não se conheciam o suficiente, sequer para supor se eram românticos. Rozangela detestava rosas. Mas talvez ela quisesse uma. Machado não possuía sensibilidade romântica alguma. “Então, tio, dá uma rosa pra ela”. Machado olhou de soslaio para Rô, que não demonstrou nada. “Hoje não, outro dia, tá?” A menininha de rosa deu as costas com todas as rosas no balde. Com o ar tomado do cinza da fumaça dos cigarros dele, Rô sentia-se mal e já estava cansada: “Vamos para minha casa?” “Vamos”.

Caminhavam meio tortos em direção ao ponto de ônibus, aonde tomariam um táxi. “Me dá um cigarro?”, pediu ela, “Não dá, acabaram os fósforos”. Ambos cambaleavam, Rô pior do que Machado, sentiam-se verdes e enjoados da bebida e um do outro, queriam acabar logo com aquilo, um táxi que não vinha...

Bem mais à frente os dois observaram a menininha na sua tentativa de vender rosas... “Por que eu não pude comprar uma rosa para ela?”, pensou. “Ele não precisava comprar uma... bastava o gesto, um ‘quer?’...” Por descuido, a fumaça do último trago, do último cigarro, foi parar em cheio no rosto de Rô; o enjoo ferrava com ela, sentiu uma ânsia conhecida ao aspirar a fumaça... iria vomitar. Levou as mãos inconscientemente ao estômago, em seguida à boca. “O que foi?” “Nada”. “Nada?! Você está rosa... Era só o que faltava, essa garota passar mal ali...” Rô não iria vomitar no chão. Muito mal, ela procurava alguma coisa em que pudesse aparar suas... intimidades liquidas, não viu nada... não muito longe reviu a menina. E apontou para ela.

De fato, ela estava rosa, não aguentaria muito tempo, querendo ser educado e não dar mais foras naquela noite correu como pôde até a garota das flores. “Quanto é?” “Um real” “Vou querer todas e o balde também.” Os olhos da menina brilharam e se abriram num verde-esperança...

Machado voltou o mais rápido que pode para o ponto de ônibus, “Está linda...” Rô estava curvada, as pernas trançadas, uma das mãos escorada no poste, a outra sobre uma das pernas. “Você está linda...” Apesar de achar inadequado o momento, amou o elogio; Rô ainda estava agachada, ergueu a cabeça, ela não queria as rosas... virou todas as rosas no chão, levantou-se rápida demais para alguém que estava passando mal... errou o balde e vomitou no peito de Machado – na sua camisa de seda rosa. Ela ficou chocada e sem cor e em seguida, uma onda de vergonha a fez enrubescer por completo; ele, após o choque inicial se abaixou e pegou a rosa menos suja que encontrou e oferecendo disse: “Mas o que seria do rosa se todos gostassem do azul?” Ainda tonta, mesmo detestando rosas, aceitou a flor e riu; ele reconhecendo no gesto a sua inabilidade romântica não perdeu mais tempo: largou o balde inútil, levantou-lhe o queixo com uma das mãos, e com a outra limpou um resto de coisa rosada que escorria pelo canto da boca, abraçou e beijou os lábios ainda sujos de vômito. E os dois não viram o táxi amarelo que passou em seguida.
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Publicado originalmente em De vermes e outros animais rastejantes, editora Multifoco, 2008.