12 de jun. de 2010

Um microconto, do livro inédito 'Tesselário'

XX. NO FUNDO DA ALMA.
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Por Geraldo Lima
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Já pensei naquela bola um milhão de vezes.
(Do goleiro Barbosa, sobre o último gol do Uruguai.)
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De tão trágico, aquele lance deve ter sido maquinado antes mesmo da gênese da palavra bola, num tempo em que pulsavam apenas o abismo e a solidão divina.
Anterior à ideia de grande área. Antes, muito antes da noção de alegria e de tristeza. Antes, muito antes, num espaço vazio, num tempo oco, começara a existir: súbito objeto esférico, feérico, fêmea libidinosa, sinuosa, matreira, vindo por entre as pernas dos jogadores, nem sempre tocando o chão, prestes quase a alçar voo, rolando sobre o gramado, rendendo-se ao assédio dos pés no leito verde, sob apupos, sob aplausos, indiferente a tudo, vindo, vindo, se aproximando imensa, lua cheia belíssima, planeta longínquo ainda por ser descoberto, astro luminoso cegando-o completamente, furtando-lhe o movimento preciso, a agilidade, a alma de felino...
Por fim, cruzou rente à sua vida, tocou o fundo da rede, cessou... e continuou a rolar na sua mente, no campo esmaecido da memória, refazendo trágica o mesmo percurso, indefinidamente.