17 de jun. de 2010

Os colunistas d'O BULE entrevistam Luís Henrique Pellanda

Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba (PR), no dia 6 de abril de 1973. É escritor, jornalista, dramaturgo, roteirista e músico. Coeditor e cronista do site Vida Breve, também atua como subeditor e colunista do jornal literário Rascunho. É autor do livro de contos O Macaco Ornamental, editado pela Bertrand Brasil, em 2009. Como jornalista, trabalhou nas redações dos jornais Gazeta do Povo e Primeira Hora. Cantor, tem passagens por diversos grupos, como as bandas de rock Woyzeck e Svetlana e a orquestra de samba Gente Boa da Melhor Qualidade.




Foto de Matheus Dias




CLAUDIO PARREIRA
– Você já tem uma larga experiência no jornal Rascunho, além de publicar semanalmente no Vida Breve (um blogue coletivo de crônicas). Então, por que o livro de estreia só agora? Fale sobre o processo de criação e de publicação d’O Macaco Ornamental.
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – O momento em que estreamos editorialmente não é definido por nossa vontade — ainda bem, pois nem todo mundo estrearia com algum sucesso antes dos dezoito anos, como Rimbaud. É coisa de maturação, simplesmente. Primeiro, é muito bom que um escritor viva e descubra, ou encontre, no decorrer de sua vida, algo a dizer; no caso da minha literatura, que, muitas vezes, é uma recriação bastante livre das minhas lembranças, isso foi fundamental. Depois, é bom que um autor aproveite os seus anos pré-publicação para buscar o aprimoramento de uma voz e de um pensamento minimamente originais. Há muita gente escrevendo por aí e, se quisermos ser lidos por alguém, precisamos oferecer alguma excelência ao leitor — ou, quem sabe, como sugeriu certa vez Harold Bloom, pelo menos uma pretensão de excelência. O leitor não tem a obrigação nem a necessidade de ler o que escrevemos, portanto, temos que oferecer algo bom a ele. Parece um raciocínio óbvio, mas para muita gente não é. Muito se protesta contra o desinteresse dos outros. Por outro lado, pouco se reflete acerca do valor daquilo que se oferece a eles.

Quanto ao processo de criação de meu livro de estreia, acho que ele não diferiu muito da média. Quando escrevo contos, num primeiro momento, desenvolvo minhas ideias e meus enredos a caneta, num bloco de papel barato, ou numa caderneta comum. Rascunho o começo, o meio e o fim de cada história. Depois que tenho tudo estruturado — trama, subtexto, significados etc. —, me sento ao computador e escrevo, reescrevo e reescrevo tudo, frase a frase, com calma e cuidado, várias vezes. Também costumo ler tudo que escrevo em voz alta. No caso d’O Macaco Ornamental, quando achei que já possuía um conjunto decente de contos, eu os entreguei à leitura de meu amigo e colega Rogério Pereira, editor do Rascunho. Por ser meu amigo, exigi dele a sinceridade plena. Sua aprovação me deu certa segurança para procurar o escritor e jornalista José Castello, a quem também pedi uma opinião rigorosa. Cerca de um ano depois, Castello leu meus contos e me aconselhou a enviá-los à Bertrand Brasil. Um semestre após a remessa do material à editora, recebi uma resposta — positiva, felizmente. Mas o processo todo, entre a escrita e a publicação do livro, levou uns três anos. Lembrando que tudo que escrevi antes disso, desde a minha primeira adolescência, já foi merecidamente para o lixo.

CLAUDIO PARREIRA e GERALDO LIMA – Orelha de José Castello, quarta capa assinada por Ruffato, Scliar e Carpinejar. Como livro de estreia, a responsabilidade pesa por conta dessas apresentações? Seu livro foi apresentado como a grande novidade do ano por escritores de peso como esses. Isso fez com que o livro tivesse uma repercussão maior?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Não senti esse peso, em momento algum, e muito menos por conta das apresentações elogiosas ao meu livro. Quando elas vieram, a obra já estava acabada, meu trabalho já estava feito. Ou seja, tal carga de responsabilidade já não teria mais como interferir em nada de importante. É claro que gostei de saber que meus contos foram tão bem lidos, e por autores que respeito muito. Isso me envaideceu, de certa maneira, mas dentro de um limite razoável. Acho, sim, que O Macaco Ornamental teve uma repercussão um pouco maior do que teria se não fosse oficialmente apresentado por Scliar, Castello, Ruffato e Carpinejar — o que não quer dizer, de forma alguma, que ele tenha repercutido de modo estupendo no ambiente literário nacional. Até agora, o livro não fez muita marola, não. O que também me parece muito natural, tendo em vista que se trata do livro de estreia de um autor relativamente desconhecido. A literatura também exige o seu tempo. É um trabalho lento. Por outro lado, algumas pessoas já me disseram que, quando as apresentações a uma obra e os elogios a um autor são muitos, é melhor desconfiar de ambos, do livro e do escritor, pois tudo lhes cheira à politicagem. Bem, generalizações também me soam um tanto cabotinas. Mas cada um pensa o que quer. De minha parte, prefiro que me leiam e que, disso, tirem algum proveito. Quem gostaria de ter seu trabalho rechaçado? Reforço, aqui, que também não devemos nos deixar embalar por elogios. É o mesmo princípio das críticas negativas: elas não podem nos tirar o sono. Com os elogios e as críticas, devemos somente calibrar nosso trabalho.

HOMERO GOMES – O que foi preciso fazer para que um escritor “morto literariamente” (conforme Jamil Snege afirma a respeito da natalidade curitibana) pudesse publicar seu livro em um selo ligado a um dos maiores grupos editoriais do Brasil? Os contatos, as amizades e os comentários influenciam na seleção de um original?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Entendo o que Jamil Snege quis dizer com esse “morto literariamente”, mas também sei que isso era um pouco de jogo da parte dele. Porque os curitibanos, somente por serem curitibanos, não estão mortos literária ou culturalmente. Temos o Dalton e o Cristovão, hoje, como bons exemplos disso. A longevidade do sucesso de Leminski também prova que, apesar de morto e curitibano, ele ainda não morreu literariamente. São exceções relevantes, e certamente há outras. Em relação a contatos e amizades, eles influenciam tanto na seleção de um original quanto na publicação do novo livro de um autor já consagrado, ou mesmo na reedição ou na ressurreição de autores mortos há séculos, cultuados ou não. Estamos falando de mercado, e o mercado sempre envolverá dinheiro e redes de contatos. Isso sempre foi assim, e não será o nosso incipiente século 21 o primeiro a se guiar por regras comerciais. Há a literatura e há o mercado literário. Às vezes, as coisas se misturam. Às vezes, uma ou outra coisa dá certo e encontra o seu público. Muitas outras, porém, às vezes muito boas, morrem e se perdem para sempre. Mas isso não é novidade, não é um mal da nossa época. Se Shakespeare e sua trupe não tivessem amigos e contatos influentes, Hamlet seria menos que um fantasminha gritando “Jurai!” madrugada afora e se arrepiando ao canto dos galos. A obrigação de um escritor, no entanto, é não permitir que o mercado contamine a sua escrita. Tampouco se deve escrever para o deleite e o desfrute dos amigos.

CLAUDIO PARREIRA – Como ficam agora o roteirista, dramaturgo, jornalista & músico? Ou foi sempre tudo isso junto com o escritor?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Ficam bem, obrigado, Claudio. Na verdade — e no meu caso —, o músico, o jornalista, o roteirista e o dramaturgo trabalham, quase sempre, em grupo. O cantor com os músicos da sua banda, o roteirista com o cineasta e sua equipe, o dramaturgo com sua trupe, e o jornalista com o resto da redação a que estiver atrelado. Recorro, portanto, ao velho clichê: o escritor escreve solitariamente e seu texto é o produto final de seu esforço. Vai direto aos leitores, sem o intermédio de outros artistas. Quanto a minhas outras atividades, seguem normalmente. Esta semana, acabei de entregar o roteiro de um curta-metragem ao diretor curitibano Marlon Klug; chama-se, por ora, O Fator Humano. Também aguardo a estreia de uma peça minha, Astério, com direção do Flávio Stein. Como jornalista, permaneço como subeditor e colunista do Rascunho, acumulando outros trabalhos esporádicos. E, como músico, preparo, juntamente com minha velha banda, o Woyzeck, um pacote de novas canções para breve. Estamos compondo, arranjando e gravando algumas faixas. Mas, adianto: sem quaisquer compromissos.

HOMERO GOMES – Conte para o leitor d’O BULE mais detalhes sobre o seu processo de criação. É “uma coisa de cada vez, tudo ao mesmo tempo, agora” ou é demorado, metódico, na ponta do lápis e da caneta na agenda? Escreve em horário e dias fixos ou seu processo é caótico e vai conforme o tempo lhe permite?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Já adiantei parte dessa resposta na primeira pergunta. Vamos, portanto, ao seu complemento, aos horários em que trabalho. Impossível fixá-los. Escrevo quando dá, geralmente nas frestas de outros serviços — estes, sim, remunerados —, como a preparação de entrevistas e mediações de eventos, a revisão e a edição de textos jornalísticos ou literários, a redação e a criação de roteiros e argumentos etc. Mas, falando de minhas preferências, se possível, procuro escrever literatura pela manhã, quando estou mais descansado, após uma corrida de meia-hora. Também faço questão de não abrir as janelas ou as cortinas enquanto escrevo. Não por gostar do escuro, mas por gostar de silêncio, apesar de morar no Centro de Curitiba.

GERALDO LIMA e RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Novos meios de divulgação de livros têm conquistado espaço entre nós, desde outdoors até hotsites. No caso de O Macaco Ornamental, você usou um meio que é ainda pouco explorado entre nós: o booktrailer. Os resultados com o emprego desse recurso na divulgação do seu livro foram satisfatórios? Que tipo de repercussão ele obteve? Os leitores se manifestaram? Em sua opinião, que papel a internet pode desempenhar em relação à literatura?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Em primeiro lugar, preciso falar dos diretores do meu booktrailer, Rodrigo Stradiotto e Rosane Melink. Melhor dizendo, preciso agradecer a eles por toda a atenção que dedicaram a esse trabalho — que acabou, muito justamente, premiado no Bibliofilmes Festival, em Portugal. Também digo que gostei imensamente da leitura que fizeram do meu O macaco ornamental, conto-título de meu livro. Desnecessário frisar que o filme que criaram é uma obra de arte independente do meu livro e do meu conto, e que transcende a ideia básica que se faz de um mero “material de divulgação”. Agora, como material de divulgação que efetivamente é, o booktrailer d’O Macaco Ornamental foi mais que satisfatório. Atraiu muitos novos leitores à minha obra de estreia e despertou a curiosidade de outros tantos, que me mandaram mensagens, e-mails, perguntas etc. Aliás, quem estiver interessado em conhecer melhor o trabalho dos diretores Melink e Stradiotto pode visitar o site da dupla:
http://www.melinkstradiotto.com.br/.

Quanto ao papel da internet em relação à literatura, acho que o principal deles, até agora, está ligado também à divulgação, e por motivos óbvios. Por meio da web, em blogs e redes sociais, um autor pode divulgar o seu trabalho de maneira muito mais eficiente e adequada do que qualquer grande editora, pressionada pela imensa quantidade de lançamentos que precisa desovar no mercado e na imprensa quase que diariamente. É claro que a internet também favoreceu a publicação de muito material literário que, caso ela não existisse, estaria mofando na gaveta de seus autores. Essa facilidade de publicação é algo ótimo, mas não é tudo. Nem sempre é bom ser seu próprio editor. Há filtros necessários. Mas compete a cada escritor saber de si. Quem é ruim provavelmente se queimará — estou falando de literatura, e não de “celebridade”. Quem é bom, infelizmente, talvez não consiga aparecer em meio a tantas opções. Alguém tem alguma certeza?

GERALDO LIMA – José Castello diz numa resenha sobre O Macaco Ornamental que “Um conto só é um grande conto quando se desvia do que um conto deve ser”. E ele completa dizendo que “Em geral só na maturidade os contistas conquistam essa liberdade interior”. A grande surpresa é que com você isso aconteceu bem antes. Num conto como Duas cartas, que retoma o gênero epistolar, o emprego de gírias, de frases curtas e cortantes, além do tom raivoso, exemplificam bem essa liberdade com que você escreve. A que você associa essa sua “liberdade interior” de escrever? Há aí a influência do rock, já que você é músico e participou da banda Woyzeck? A poesia também tem um papel fundamental nesse caso, já que alguns dos seus contos se avizinham da poesia?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Geraldo, acho que o rock e a poesia me influenciaram, sim, já que, de certa forma, fazem parte da minha formação pessoal e profissional desde a infância. Não me influenciaram, porém, de maneira direta, como escritor. A liberdade de escrever, todos a temos, desde que não escrevamos visando a conquistar, como bárbaros das letras e das ideias, o tal mercadão literário. Mesmo assim, essa liberdade de escrever terá sempre um limite, estabelecido por cada autor no momento em que define o que quer transmitir aos seus leitores.
Mas quero falar um pouco de poesia. Fui um grande leitor de versos na adolescência, como acho que todo escritor que se preze deve ter sido. Na época, lia, muito e anarquicamente, poetas como Castro Alves, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, W. B. Yeats, Paul Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, Maiakovski, Camões, Dante, Milton, Drummond, Bandeira, Gonçalves Dias, Dylan Thomas, T. S. Eliot, William Blake, Ovídio, Shakespeare, Virgílio, Bocage, Leminski, Shelley e muitos outros. Depois, houve um período em que a prosa tomou conta de quase todo o meu tempo de leitura, e meus gostos variaram, me levaram por outros caminhos. Hoje, voltei a ler bastante poesia, e com grande prazer, me concentrando na obra de autores como Herberto Helder e Murilo Mendes. Ao escrever meus contos, portanto, é claro que não penso formalmente em poesia. Mas estou certo de que essa poesia toda, e todos os versos que li e reli durante a minha vida, me ajudaram, sim, a apurar meu olhar sobre as coisas do mundo.

RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Uma pergunta que você costuma fazer aos seus entrevistados no Rascunho, faço agora para você: Que personagens mais o acompanham vida afora?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Vários personagens me acompanham vida afora, alguns até contra a minha vontade, como conhecidos incômodos e inconvenientes. Mas, para não abrir muito o leque, vou citar aquele que para mim foi, sem dúvida, o mais importante e revelador. Trata-se de Hans Castorp, protagonista d’A Montanha Mágica, de Thomas Mann, livro que li, pela primeira vez, entre os 15 e os 16 anos de idade. Castorp, então, me pareceu um grande personagem por me indicar as várias possibilidades de crescimento, mudança e — em certo sentido — revolução pessoal que eu tinha pela frente. Não acho que, sem ele, eu não as descobriria, mais dia, menos dia, mas aquela foi uma leitura que me marcou muito. Castorp é, para mim, com toda a sua “inocência” ultrajada, um companheiro sempre desejado. E, sempre que releio aquela obra-prima de Mann, e sempre que refaço a trajetória de Castorp, a sensação de que, como ele, estou ainda no começo de alguma coisa grande se renova. Isso, estranhamente, me parece bom, mesmo que essa “grande coisa” a que me refiro, sem saber ao certo de que se trata, não exista, ou que seja, simplesmente, a nossa passagem final para a inconsciência.
RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Quais autores e livros mais o marcaram?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Pergunta sempre difícil, Rodrigo, se quisermos uma resposta completa. Nem tentarei. Mas vamos a uma parcial: me marcou, como disse há pouco, a obra de Thomas Mann, que li quase toda — ou pelo menos a parte dela que está traduzida para o português. Shakespeare foi sempre uma leitura prazerosa, em vários sentidos, desde o estético até o intelectual, e uma leitura sobretudo clareadora de pensamentos. Na adolescência, certamente me marcaram Oscar Wilde, Voltaire, Camus, Kafka, Dostoievski, Dalton Trevisan e Machado de Assis, além de vários poetas aos quais já paguei meu tributo. Pouco depois, Dickens, Cervantes, Melville, Conrad, Guimarães Rosa, Raduan Nassar e Thomas Pynchon. Mais recentemente, Campos de Carvalho, Sérgio Sant’Anna e Cormac McCarthy.

HOMERO GOMES – Perdemos recentemente o escritor Wilson Bueno, em um incidente trágico e ainda misterioso. A respeito disso, se quis passar a impressão de que, além de não possuir herdeiros literários, Bueno era o último de uma geração. Para você, esses comentários, por mais que não pretendessem ao assassínio moral da literatura curitibana, carregam o isolacionismo a tiracolo? Para você, o que representa ser um escritor curitibano? O que é a literatura feita em Curitiba?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – De fato, não acho que essa tentativa de homicídio moral tenha acontecido, Homero. Considero mais perigoso — inclusive no sentido isolacionista da coisa — defender a existência de uma literatura suposta e essencialmente curitibana. O melhor, porém, é responder por partes. Curitiba é minha cidade, e minha cidade é, também, a minha cultura. Faz parte de minha cultura, não se separa de mim. Em Curitiba, ou sob a sua influência, vivi quase todas as minhas experiências mais fundamentais. Por isso, ela está em mim e no que escrevo. Mas a Curitiba de meus contos ou de minhas crônicas não é a mesma cidade que está nos livros do Dalton, ou do Cristovão, ou do Roberto Gomes. Não é a mesma cidade do Luiz Felipe Leprevost, ou da Assionara Souza, ou do Carlos Machado, ou do Paulo Sandrini. Cada um desses autores descreverá, sempre, a sua cidade particular, uma cidade recriada, reconstruída literariamente a partir de suas idiossincrasias e obsessões, a partir de seu humor ou até mesmo de sua falta de humor. Nem o jornalismo, com todo o seu delírio pela verdade, é capaz de dar conta de uma cidade real. Portanto, as Curitibas que lemos por aí têm mais a ver com os autores que as criaram do que com ela própria. Também desprezo conceitos como patriotismo, nacionalismo, bairrismo ou provincianismo — defendê-los é uma forma convencional de isolar-se e de isolar o diferente, o alienígena. Acredito que a literatura, por ser pessoal, não se compartimenta assim, e talvez só se costume compartimentá-la com fins mercadológicos. Garanto, aqui, que nunca, jamais gostarei de um escritor por ele ser, primeiramente, curitibano. E, se ele for um mau escritor, sei que o fato de ser curitibano não será a causa da má qualidade de sua escrita. Agora, para mim, a literatura curitibana — que compreendo como sendo a literatura produzida por escritores que moram em Curitiba — está muito bem em termos quantitativos. Quanto mais gente escrevendo, mais chances de se produzir algo bom — ou, quem sabe, isso só aumente as chances de se produzirem confusão e escritores ruins? Não sei dizer. Mas gosto, sim, da diversidade literária que encontramos em Curitiba. Da diversidade, da mistura e do diálogo de uma literatura com outra, de um autor com outro, da vanguarda com a tradição, é que nascem as coisas boas e contundentes. Tendências unificantes, pelo contrário, serão sempre estéreis. São conversas com a parede. E, se algum escritor curitibano discordar de tudo isso que eu disse acima, tenho certeza absoluta de que concordará comigo nisto aqui: não quero ter somente leitores curitibanos.

MAURO SIQUEIRA – Conversando no Twitter com uma amiga, discutíamos a importância da literatura e da música na composição da nossa identidade e como essas artes dialogam entre elas. Você é jornalista de formação. É escritor, além de dramaturgo e roteirista; ou seja, sempre às voltas com a escrita, e além disso está na banda Woyzeck, homônima da famosa peça de Büchner. Para você como é essa imbricação de literatura e música, onde uma está mais impregnada na outra? Foi difícil não fazer algo à Nick Hornby ou Mark Lindquist?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Mauro, para você ter uma ideia de como estou distante da literatura pop, precisei me esforçar para lembrar quem era Mark Lindquist. Com isso, não quero dizer que Lindquist seja um autor ruim, mas simplesmente que não ele não me interessa. Quanto a Nick Hornby, por exemplo, o único livro dele que li foi Frenesi Polissilábico, obra que considerei divertida, e boa de consumir. Mas só. A melhor coisa que extraí dela foi a descoberta da banda de rock americana Marah, que Hornby afirmava ser a melhor do mundo. Fui atrás, conferi e fiquei impressionado. Indico a todos que gostam de rock: Marah. Incrível. Obrigado, Nick Hornby. Mas nunca me interessei por seus romances. Gosto de muitas coisas ligadas à cultura popular, mas a cultura pop, principalmente da forma como é vendida hoje, não me pega. Seus principais atores me desinteressam facilmente. Questão de gosto, creio.

Em relação à imbricação entre música e literatura, me parece que ela se faz notar, em meu trabalho, por meio de certa contagem interna de tempo, algo que, possivelmente, somente eu percebo, e só a mim, enquanto escritor, vai interessar. Quando redijo uma frase, por exemplo, naturalmente lhe confiro um ritmo, um andamento específico. Busco colocar as tônicas onde acho que devam ficar, como se houvesse um lugar fixo para cada sílaba em cada sentença. Enfim, não é algo fácil de explicar, e muito menos de se detectar no resultado final do meu trabalho. Para mim, funciona e me satisfaz. É por isso, inclusive, que leio meus textos em voz alta: para reproduzir esse ritmo, às vezes quebrado, às vezes quadrado, que, ao me sentar para escrever, eu desejei dar a eles. Fora isso, acho que a música — e o convívio íntimo com ela — nos empresta uma sensibilidade necessária à própria vida e, por consequência, à boa literatura. Mas não vou generalizar ou teorizar sobre maluquices do gênero. Maluquice, cada um tem a sua.
MAURO SIQUEIRA – Acompanho semanalmente as suas crônicas, em especial a série Trípticos, no site Vida Breve, e admiro as propostas representadas pelos títulos da série e a manipulação disto nos textos. Poderia nos falar mais sobre os seus Trípticos e quais as chances deles virarem livro?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Obrigado, Mauro. Concebi a série de crônicas Trípticos pensando na possibilidade de se criar, dentro da escrita — e, mais especificamente, da narrativa curta —, uma forma de se discorrer sobre um mesmo tema apresentando três cenas distintas a seu respeito, cada uma delas exercendo sua influência sobre as outras e, muitas vezes, modificando a interpretação que faríamos de cada história se as lêssemos isoladamente. Enfim, tem funcionado. Se a série vai virar livro ou não, depende de muita coisa, a maior parte delas alheia à minha vontade. Se compreendermos um livro como sendo um conjunto de narrativas ligadas por um mesmo fio conceitual, então Trípticos já é um livro, em constante construção, e publicado semanalmente na internet. Para que vire um livro de papel, contudo, a história é outra. Se alguma editora se interessar por ele, nós o publicaremos, é claro. Mas eu teria que “pentear” os textos antes disso. Talvez reescrever uma ou outra coisa, com menos pressa. Nada estrutural, no entanto.
MAURO SIQUEIRA – Após a leitura de O Macaco Ornamental ficou uma impressão de incompletude das ações das personagens, um dissabor e uma inadequação que encontro paralelo com o homem hoje e metaforizada no conto homônimo do seu livro. É isso? Esse é o "projeto" do seu primeiro livro: problematizar o nosso papel no mundo?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Mais ou menos, é uma interpretação possível e bacana. Mas não gosto do verbo “problematizar”. Não é o que busco. A ideia geral, no entanto, tem muito a ver com uma sensação de deslocamento que percebo no homem moderno, sempre — ou ainda — em busca de comida, companhia, amor, sexo, vida eterna, motivação e salvação, num mundo (e não me refiro, aqui, ao mundo natural) que, cada vez mais, nos dá sinais de prescindir de nossa presença. Penso no homem como um animal caprichoso, já sem função em seu próprio ambiente, e muitas vezes preso a preocupações de segunda ordem. Acho até que o livro pode ser considerado o extravasamento natural de uma antiga desconfiança minha: a de que estamos, sem querer, tomando consciência de nossa própria desnecessidade. E isso não é exatamente uma crítica. Não sei se haveria outro caminho, entende? Acho até que o que nos difere dos outros bichos é uma atração apaixonada pelo inútil. Daí estarmos discutindo literatura. Aliás, vou além: o pragmatismo que nos é cobrado, hoje, não destrói somente a literatura. Destrói a própria humanidade que a literatura representa.

ROGERS SILVA – Em seu livro, homossexualismo/lesbianismo embutido ou explícito (Duas cartas, O buquê), perversão, estupro e pedofilia (Little boat of love, Chaleira), heresia (Nós, os limpos) convivem harmoniosamente com a densidade poética de outros (ou nos mesmos) contos (Ladrão de cavalo, Caldônia beach etc.). No afã de escrever obras realistas, cruas, que discorram sobre a violência ou que sejam de alguma forma provocadoras, com linguagem coloquial e concisa, você acha que muitos autores contemporâneos estão se lixando para essa força: o poético?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Fico feliz com a sua leitura, Rogers. Sim, eu considero o poético uma força literária importante, uma das maiores, e busco usá-la com certa constância — sem derramamentos líricos, porém, e com algum derramamento irônico, para não me tornar enfadonho. Quanto aos outros autores contemporâneos, não sei dizer se estão se lixando para esse recurso, ou se simplesmente os interessa mais a concisão. É uma questão de discurso, ou de postura. Creio que há autores de todo tipo, e isso é excelente. Houve, recentemente, uma grande tendência ao naturalismo, que não é mesmo a minha praia, embora eu ainda não saiba, e nem deva, nomear a praia que eu frequente. Mas, voltando à falta de concisão e de coloquialismo do meu texto, sei, por exemplo, que muita gente cultiva um ódio mortal ao adjetivo, como se ele só servisse para enfeitar uma frase, ou como se estivéssemos todos proibidos, sabe-se lá por quais motivos, de recorrer a acessórios ornamentais — para usar, aqui, um adjetivo presente no próprio título de meu livro. Confesso que isso, essa birra geral com o texto não naturalista, foi algo que me incomodou durante muito tempo. Mas, outro dia, ouvi o João Gilberto Noll discorrer sobre o assunto e algumas coisas se iluminaram. Ele se perguntava por que, em nossa época, sempre que algo é bom dizemos que ele é “substantivo”. Para o Noll, hoje, a substância das coisas, a substância do nosso mundo, estaria cada vez mais difícil de ser apreendida, e esse horror ao adjetivo, apesar disso, se fortaleceria por ser “uma coisa de machão”. E o Noll terminava afirmando o seguinte: “Não tenho mais medo de adjetivo. Às vezes, o adjetivo é a única forma de você mostrar sua percepção do real. Você não está dentro da substância e, às vezes, tem que celebrar os atributos da coisa”.
ROGERS SILVA – Transcrevo, agora, trechos da orelha, escrita por José Castello, do seu livro de contos O Macaco Ornamental: “A fórmula clássica do conto não passa de uma fronteira imaginária que o contista, em vez de aceitar, deve derrubar (...). Um conto só é um grande conto quando se desvia do que um conto deve ser (...) Pellanda não vacila: em vez de agir como um narrador aplicado, que ‘escreve bem’, ele se aventura em um salto no escuro”. Nesses trechos está embutido um discurso de boa parte da crítica brasileira – aquela que exige que cada novo autor seja o novo gênio da literatura brasileira e escreva obras originais; aquela que espera que todo novo livro de literatura, mais do que bom e/ou bem escrito, seja “original”. Eis então minhas provocações (no bom sentido da palavra): não acha que esse é um discurso que pode prestar um desserviço à leitura e à literatura brasileira na medida em que não aceita nada que não seja “novo”, “moderno”, “original”, segundo os parâmetros que esse próprio discurso cria/criou? Independentemente de qualquer julgamento de valor do seu livro O Macaco Ornamental, se ruim, regular, bom, excelente ou genial, você acha mesmo que os contos dele se desviam da fórmula clássica de conto? Que salto no escuro em que o autor Pellanda aventura é esse a que José Castello se refere?
LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Não posso responder pelo Castello, Rogers, mas não acho que ele cobre, de mim ou de qualquer outro autor brasileiro contemporâneo, algo tão impalpável e duvidoso quanto a genialidade. O Castello é um dos caras que mais trabalham pela literatura no Brasil, e não consigo ver qualquer desserviço no que ele faz ou no que ele diz. Muito pelo contrário. Por outro lado, se ninguém precisa ser um gênio, acredito, sem dúvida, que um escritor, qualquer escritor, tem o dever de ser original, único, e de várias formas. Outra obrigação do escritor é a de seduzir, e só escrever bem, no sentido formal da coisa, obedecendo a fórmulas e regras, realmente não basta para se produzir uma obra diferenciada e sedutora — digo isso por mim, e talvez você me considere também exigente ou injusto. Não é necessário reinventar a roda, longe disso. Também não é necessário elaborar diariamente uma língua nova, atirar neologismos na cara de seus leitores, abolir a pontuação, a acentuação ou os pingos nos is, ou, num acesso guerrilheiro, abater toda e qualquer vaca sagrada que muja ao nosso redor. O novo que deve ser buscado, neste caso, me parece ser a renovação do próprio fôlego da literatura, a renovação de sua vitalidade, de seu ânimo. Nesse sentido, não buscando modelo algum, e cavando alguma originalidade dentro de mim, acredito que dei, sim, um salto no escuro. Se vou cair de pé, a história é outra. Mas é comigo.

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