3 de jun. de 2010

Os colunistas d'O BULE entrevistam Italo Moriconi


Italo Moriconi é poeta, editor, organizador de antologias e professor de Literatura Brasileira e Comparada na UERJ. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (1975), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980) e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1991), além de um Pós-Doutorado em Comunicação na UFRJ (2001). Autor de A Provocação Pós-Moderna (ensaio acadêmico, 1994), Ana Cristina César – O Sangue de uma Poeta (Relume Dumará, 1996) e Como e Por Que Ler A Poesia Brasileira do Século XX (ed. Objetiva, 2002). Organizou as antologias Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2000) e Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2001). Editou Cartas de Caio Fernando Abreu (ed. Aeroplano, 2002). Publicou 3 livros de poesia: Léu (1988), Quase Sertão (1996) e História do Peixe (2001). Recentemente teve trabalhos publicados nas revistas Grumo (Rio/Buenos Aires) e Margens (Belo Horizonte/Salvador/Buenos Aires). Nos últimos anos, tem publicado diversos ensaios sobre teoria estética e sobre poesia pós-modernista brasileira em periódicos universitários.


CLAUDIO PARREIRA – Nos anos 70, ao lado de Cacaso, Chacal e Ana Cristina Cesar, você era considerado “marginal”. Como você lida agora com o fato de ser considerado celebridade, por conta das antologias que organizou?
ITALO MORICONI - Caro Claudio, gostei da expressão “ser considerado”. “Ser considerado” significa que nem sempre aquilo que vêem na gente é a expressão da verdade. Eu não era considerado marginal nos anos 70. Minha relação com a turma dos que hoje são chamados de poetas marginais era muito oblíqua. Eu me mudei de Brasília para o Rio em 1976 e as turmas dos marginais tinham sido formadas alguns anos antes. Meus grandes amigos na época foram Ana Cristina Cesar e Paulo Henriques Britto, independente de turmas, e se fui de alguma turma, eram a turma do suplemento da Tribuna da Imprensa e a da pós-graduação da PUC. Havia, claro, uma identificação geracional. A minha turma de amigos e parentes da mesma idade provavelmente tinha os mesmos hábitos que a turma dos poetas marginais – nós éramos contraculturais, libertários, fumávamos maconha, ficávamos pelados em acampamentos em praias desertas ou no meio do mato, fazíamos macrobiótica, acreditávamos e praticávamos a liberação sexual total (eu era meio tímido e tive que fazer análise para me adaptar ao clima de soltura geral). Portanto, não me considero um poeta marginal, mas alguém que na juventude viveu as loucuras dos anos 70, apesar de não de uma maneira excessiva. Porém, concordo que meu primeiro livro de poesia, de 1988, juntando coisas que eu escrevia desde os anos 70, pode ser considerado como uma manifestação tardia de “poesia marginal”, na medida mesmo em que esta expressão acabou ficando consagrada pela história literária estabelecida. Eu nunca fui marginal, no sentido de que a partir dos 20 anos de idade, sempre tive emprego, ralei, etc. Comecei a trabalhar aos dezenove anos como tradutor e professor do inglês. Então meu perfil maior sempre foi o do bom aluno e depois o do ralador. Tive sorte de nascer num ambiente de classe média ascendente que me permitiu só começar a trabalhar aos 19-20 anos. Meu pai e minha mãe eram profissionais de nível de formação equivalente ao universitário e trabalharam de sol a sol a vida inteira, o que permitiu a mim e meu irmão termos uma infância e adolescência feliz e de pura formação, sempre com muitos estudos e esportes (meu irmão mais nos esportes do que eu).
Quanto a ser celebridade, eu não acho que seja tanto assim. A relação com isso é ambígua. Por um lado é bom pela vaidade e pelo fato que cria um elo afetivo a priori muito legal com muitas pessoas. Por outro lado isso te deixa preso a uma máscara social que às vezes incomoda. Mas eu acho que me divirto e que na verdade gosto dessa coisa de “criar o meu próprio personagem”. A chamada celebridade, ou simplesmente, a visibilidade pública, faz com que a pessoa viva cada vez mais em função de criar a sua máscara social, o seu personagem. Me sinto preso a ele e faço muitas fantasias de me libertar dele e a melhor maneira para isso, claro, é preservar uma privacidade. Eu na verdade tenho uma vida privada que eu acho que prevalece sobre a vida pública, por isso acho o termo celebridade um pouco exagerado para definir a minha situação. Na cultura da celebridade, acho que existem taxas diferenciadas, taxas de visibilidade diferenciadas. Eu me dou uns 3 numa escala de 0 a 10. Ainda bem!
CLAUDIO PARREIRA – João Silvério Trevisan odeia quando se referem à sua obra como literatura gay, assim como o próprio Caio Fernando Abreu. Já rotularam a sua poesia dessa forma? Como é que você reage diante desse “enquadramento”?
ITALO MORICONI - Eu não tenho problemas que classifiquem minha poesia como gay. Certamente, não a escrevo pensando nisso, pois embora eu seja totalmente a favor do movimento gay/lésbico e da luta pelos direitos gay/lésbicos, me situo de maneira muito hesitante e ambígua em relação a toda e qualquer reivindicação de identidade. Prefiro dizer que meus poemas são homoeróticos. Intelectualmente, eu me identifico mais com as perspectivas “queer” do que com as identitárias duras, que eu acho que são importantes politicamente mas tendem a se tornar simplórias, dogmáticas e autoritárias, pelo menos na versão anglo-saxônica. Fiz uma opção de tratar desses assuntos relacionados à homossexualidade e bissexualidade no plano puramente artístico. Não me agrada nem pretendo expor autobiograficamente minha vida pessoal, mas basta ler a minha poesia para ter uma ideia de aspectos da minha intimidade. A poesia como discurso lírico da intimidade (e a minha se situa nessa linha) dá sempre um retrato teatralizado e deslocado dela ou de sua versão fantasmática, fantasiosa.
CLAUDIO PARREIRA – Italo, como foi para você mergulhar no mundo turbulento de Caio Fernando Abreu?
ITALO MORICONI - Foi bastante pesado psicologicamente fazer algumas entrevistas, mas depois o peso maior veio mais da exaustão provocada pelo trabalho em si. Deu muito trabalho fazer o volume de cartas. Tinha muito material no caso de alguns missivistas e precisava sair em campo procurando pessoas para aumentar o leque dos mesmos. Mas literariamente eu gosto, pois me identifico muito com a turbulência dele, embora Caio tenha um lado sentimental que é diferente, acho, da maneira como eu lido e me relaciono com sentimentos. Caio era hiper radical na vida e eu o admiro por isso, mas eu não sou tão radical em termos de atitude quanto ele. Nunca conheci o Caio pessoalmente. Quando ele estava vivo, eu acompanhava mais de perto outros autores, como o Noll, o Silviano Santiago, a Hilda Hilst, o Sérgio Sant’Anna, o Rubem Fonseca, ele menos. Eu gostava muito de Morangos Mofados, mas foi com Dulce Veiga no início dos 90 e logo em seguida o episódio da AIDS que passei a mergulhar mais forte no universo do Caio. .


JEAN ROBERTO (correspondente) – Em 1º de agosto de 2001 você foi entrevistado pela Revista Veja e naquele dia declarou o seguinte: "São tantas sensibilidades feridas que tenho medo de me pegarem de tocaia", referindo-se à sensibilidade dos escritores não escolhidos para as coletâneas organizadas por você. Quais os escritores – merecedores – ficaram de fora das suas antologias?
ITALO MORICONI - Lembro-me de ter feito essa declaração, mas não me lembro de que tenha sido na matéria da Veja. Muitos escritores merecedores ficaram de fora. A antologia é de poemas e não de poetas. Sempre disse aos editores que adoraria fazer uma nova antologia, intitulada Mais Cem Melhores Poemas.
JEAN ROBERTO (correspondente) – No livro Cem melhores contos brasileiros do século, você publicou o conto do escritor Moacyr Scliar chamado A balada do falso messias. O conto narra a saga de Shabtai Tzvi, um lunático aspirante a Messias. O que levou você a publicar este conto e que você acha do Moacyr Scliar escritor?
ITALO MORICONI - O que me levou a publicar esse conto é que o acho excelente. E também pelo fato de trazer o elemento judaico. Acho que o Scliar é um dos grandes escritores brasileiros vivos. Admiro a produtividade e a imaginação de primeira linha dele. Ele traz em si muito forte o DNA do contador de histórias, mas não na linha épica de um Érico ou na linha costumbrista de Jorge Amado e do mainstream modernista brasileiro em geral. É numa linha urbana e, por que não dizer?, judaica mesmo. Ele não é um narrador de longo fôlego e sim, curto, irônico, anedótico, mesmo em romances. Viva Scliar!
JEAN ROBERTO (correspondente) – Os versos de Cecília Meireles ganham mais espaço do que os do rigoroso João Cabral de Melo Neto. Por quê?
ITALO MORICONI - Foi algo fortuito. Eu me arrependo de não ter colocado também o Morte e Vida Severina do Cabral. Atualmente, não tenho achado Uma faca só lâmina tão superiormente imprescindível. Ocorre que esse poema foi emblemático de um modo de compreensão da poesia brasileira muito importante num dado momento, que galvanizou toda uma geração de críticos, justamente a geração de meus mestres – Costa Lima, Merquior, Haroldo de Campos, Silviano Santiago. Creio que o Affonso Romano nunca gostou tanto assim de Uma faca só lâmina. Cada vez mais me liberto das amarras transmitidas por meus mestres, porque cheguei a uma idade em que o mestre sou eu, para o bem ou para mal. Mestre no sentido que lhe deu Guimarães Rosa, aquele que de repente aprende, como adorava citar outra de minhas grandes mestras, a Dirce Riedel. Cecilia Meireles tem ligações profundas com a raiz mais vernácula possível do nosso lirismo, daí a importância. Eu a considero uma poeta tão rigorosa quanto Cabral. Mas não no sentido ideológico que a palavra “rigor” adquiriu nessa geração supracitada.
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GERALDO LIMA – Você viveu em Brasília durante um bom tempo (de 1960 a 1975). Formou-se, inclusive, em Sociologia na UNB. Você ainda tem alguma ligação afetiva com a cidade? Tem acompanhado a produção poética dos seus autores?
ITALO MORICONI - Sim, minha mãe, irmão, cunhada, amigos do peito de infância e adolescência moram lá e viajo bastante para lá, sempre no Natal e algumas vezes durante o ano. Minha família foi pioneira, somos muitíssimo ligados à Brasília dos brasilienses, dos candangos, não à Brasília dos políticos. Acompanho pouco a nova produção poética de lá. Gosto do Nicolas Behr, o poeta brasiliense ícone da minha geração, amigo de meu irmão, Sergio Moriconi, que é crítico de cinema lá.
GERALDO LIMA – No seu poema O Efebo, O Efebo..., há a presença da temática homoerótica e uma dicção que nos lembra, de certo modo, a de Allen Ginsberg e a de Roberto Piva, claro, com um pouco mais de contenção. Estou extrapolando ou há realmente a influência desses dois poetas na sua poesia de temática homoerótica?
ITALO MORICONI - Não sei se há influência. Mas Ginsberg e Piva são dois poetas que amo. Gosto muito também dos poemas homoeróticos do Whitman, inclusive fiz uma tradução do Calamus, que é o poema em que Whitman, ao completar quarenta anos de idade, sai do armário. Outro poeta homoerótico que amo muito é Kavafis, apesar de não ser capaz de lê-lo no original. Quem me apresentou ao Kavafis foi o Paulo Henriques Britto, lá pelos idos de 77, 78. O Piva e o Kavafis celebram o amor dos homens maduros pelos rapazes mais jovens, já o que me agrada em Whitman é que ele fala do amor entre homens feitos, homens maduros, trabalhadores. Mas o Kavafis eu gosto ainda mais do que do Piva, porque fala do ponto de vista do cara que está envelhecendo, gosto do tom nostálgico do homoerotismo dele.
GERALDO LIMA – Você se tornou um respeitado organizador de antologias. Parece-me que DESTINO: POESIA (Editora José Olympio, 2009), livro no qual você reuniu cinco poetas emblemáticos da poesia marginal da década de 70, é o seu mais recente trabalho nesse sentido. Há algum outro projeto de antologia sendo pensado ou já em andamento? E qual seria a importância dessas antologias para a cena literária brasileira?
ITALO MORICONI - No momento não há proposta de antologia em andamento. Antologias são importantes do ponto de vista da divulgação e da formação de leitores. Não acredito que influenciem a cena literária em termos de determinar tendências. No entanto, elas certamente ajudam a levar pessoas para a literatura.
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BRUNA MITRANO (participação especial) – Faz tempo li no site da Veja uma matéria sobre você e as antologias Os cem melhores. O título era Intelectual, mas pop. Logo no início tinha uma foto sua. A legenda da foto era: “Moriconi, no local onde faz musculação: ‘Só entra o que eu gosto’”.
O que você acha/achou do fato de terem colocado em destaque uma frase com um duplo sentido evidente? Ao dizê-la, você teve intenção de fazer um trocadilho ou o mérito foi todo do jornalista Marcelo Marthe?
Tal frase está relacionada ao fato de você assumir sua homossexualidade. Como você reage a esses rótulos (intelectual gay, pop etc.)?
ITALO MORICONI - Sinceramente, não lembro desta legenda, nem guardei a matéria, porque na época ela me deixou constrangido. A história de intelectual pop deu muito pano pra manga, teve uns desdobramentos interessantes. Acho que o deboche é uma linguagem típica da Veja. Esses são os ônus da visibilidade. Eu conquistei visibilidade, mas fui vítima desse tipo de humor gênero “zorra total”. Mas eu não me sinto ofendido até porque não considero que a sodomia seja pecaminosa e muito menos anormal, por isso eu faria humor com este tema de outra forma, não como vergonha ou estigma, e sim como pulsão orgiástica. Na época, preferi ficar com a visibilidade, que para mim é um capital. Além disso, a visibilidade é a forma que formata hoje o espaço público. Portanto, ela é um capital profissional mas é também um capital político. Quanto a rótulos, são rótulos. Sempre simplórios. Porém, o clichê é uma necessidade da comunicação. Eu ainda me sinto um intelectual, que tento ver tudo de maneira mais complexa que o rótulo, por isso não me movo pelos rótulos, embora conviva na boa com eles, porque de outra forma eu estaria assumindo uma postura elitista e arrogante. Os rótulos existem e o debate político-cultural em boa parte se dá em torno deles. Mas eu acho muito mais interessante a desconstrução de todo e qualquer rótulo, a exploração das nuances e das contradições internas. No entanto, verdade seja dita, é impossível valorar arte sem a utilização de categorias que são basicamente rótulos: classicismo, romantismo, modernismo, minimalismo, o abjeto, o sublime, irônico, desconstrutivo, formalista, construtivo, barroco, neobarroco, pós-modernismo, vanguardismo, maneirismo, etc. etc. etc. Você sempre está etiquetando arte: colocando rótulos, por um lado, e, paralelamente, dando um valor xis relacional, inclusive monetário. É o supermercado das sensorialidades objetificadas.
BRUNA MITRANO (participação especial) – As antologias – tanto a de poemas como a de contos – deram muito certo. São lidas, inclusive, por quem até então não conhecia muitos dos autores escolhidos. Como você vê esse “processo” de escolhas suas passarem a ser as dos outros (ou por identificação imediata ou por algo que surge durante a leitura)?
ITALO MORICONI - Também tenho problemas com esse tipo de processo. A gente sempre alimenta a utopia de querer descobrir tudo de maneira completamente autônoma, de não termos mestres nem guias. No entanto, sejamos realistas. Oitenta por cento do que escolhemos para ler, já vem por algum tipo de conduto, de recomendação. A gente gosta daquilo que querem que a gente goste. Mas nesse processo, a gente vai descobrindo coisas de que ninguém gosta, mas que a gente gosta e descobre que não gosta tanto de coisas que todo mundo gosta. Aí vai se desenvolvendo a autonomia crítica de cada um. O papel do acaso aumenta na medida em que por conta própria descobrimos coisas em livrarias, sebos e bibliotecas. E fundamental é quando chegamos ao ponto de termos um grupo de amigos e companheiros amantes e praticantes da literatura. O papel das antologias é fazer uma ordenação prévia do que já existe para ajudar os iniciantes a começaram a conhecer um universo proliferante.
BRUNA MITRANO (participação especial) – Em diversos artigos, ao falar sobre a Internet, você apresenta uma visão otimista. Acredita que Internet está resgatando o hábito de leitura/escrita. Gostaria que você comentasse sua relação com as revistas literárias virtuais (considerando que você escreve para o Cronópios, por exemplo); com os blogs e sites de escritores que já têm livros publicados (no caso, a versão impressa) e que usam o espaço virtual para divulgar o trabalho; e com os blogs de escritores iniciantes, aqueles que começam a publicar na Internet.
ITALO MORICONI - Assim como várias pessoas da minha geração, que se encontram na faixa dos 50 e 60 anos de idade, sou entusiasta na Internet, mas não sou tão usuário quanto outras pessoas mais jovens. Ainda acompanho muito mais a comunicação impressa do que a virtual, em todas as esferas. Geralmente vou à internet movido por uma necessidade específica. Mas gosto do que vejo. No entanto, eu desde muito cedo sou viciado em leitura de livro, de jornal, então creio que no meu caso não haverá uma substituição do suporte impresso pelo virtual, haverá apenas a convivência de ambos. Creio que quando me aposentar vou mergulhar mais fundo no mundo dos sites e blogs. Meus amigos e amigas que se aposentaram entraram todos nessa, acho um barato, são grandes navegadores na rede. Só não tenho um blog meu por absoluta falta de tempo. Em matéria de poesia, eu acho que no futuro preferirei colocar todos os meus poemas num blog do que publicá-los em livro. Cheguei a abrir um blogspot, chamado “italomori” mas só o alimentei uma vez, depois nunca mais. Coloquei lá dois poemas do meu livrinho História do Peixe. E um comentário sobre o filme A Fita Branca. .


HOMERO GOMES – Você afirma que como leitor é possível saber o que é bom e o que é ruim; entretanto como acadêmico o conceito de qualidade é relativizado. Houve uma luta interna, entre o leitor e o acadêmico – com mais de 30 anos de sala de aula –, durante a seleção dos contos presentes em Os cem melhores contos brasileiros do século?
ITALO MORICONI - Não houve uma luta interna, pois eu como acadêmico e como leitor tenho sido um só e me sinto como um só. O problema do acadêmico é que o repertório é limitado a alguns autores canônicos, que se você é professor de graduação, acaba lendo e relendo centenas de vezes. Isso enriquece a erudição e a capacidade de análise, mas empobrece o alcance da sensibilidade estética e afetiva. Por isso para mim foi benfazejo me jogar no mercado e fazer as antologias. Minha estrutura de gosto ampliou-se com esse trabalho, fiquei mais aberto, principalmente em relação a questões menos intelectuais e mais próximas do senso comum. Mas você jamais terá em mim um inimigo do saber universitário. Eu continuo sendo um intelectual e amo as questões conceituais intrincadas da teoria e da filosofia, embora meu temperamento seja muito voltado para a prática e para a politização de toda e qualquer questão. Eu sou muito sanguíneo, mesmo no cerebralismo.
HOMERO GOMES – Os contos de Guimarães Rosa não foram incluídos na antologia por questões de direitos autorais. O que isso representou para a antologia e para você pessoalmente?
ITALO MORICONI - Foi um baque muito grande e uma perda imensa para a antologia. Os contos de Primeiras Estórias estão realmente entre os melhores de todos os tempos, em matéria de literatura brasileira e mesmo universal. No entanto, meu Guimarães Rosa preferido é o das narrativas mais longas, particularmente das novelas de Corpo de Baile, que tenho em altíssima conta, sem desmerecer, claro, Grande Sertão: Veredas.
HOMERO GOMES – O critério empregado para a seleção dos melhores poemas brasileiros do século foi a essencialidade. Por favor, professor, explique esse conceito para os leitores d’O BULE.
ITALO MORICONI - Repito aqui a definição dada na introdução da antologia: essencialidade é a capacidade de um poema ser exemplar dentro do seu gênero específico. Que gênero? Os muitos tipos de poema, de poesia. Poema curto, poema longo, poema piada, poema meditativo, poema lírico, poema elegíaco, poema com marca de gênero (gender) e por aí vai. .


RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Na introdução de seu Os cem melhores poemas brasileiros do século você afirma que a antologia destinava-se ao leitor(a) marciano(a) no planeta da poesia. Quem é esse quase virgem em poesia?
ITALO MORICONI - Somos eu e você quando começamos a nos interessar e a ler poesia, eu na minha adolescência. Comecei a escrever poesia aos 13 anos e a ler sistematicamente, para estudar e aprender, a partir de uns 16, 17. Esse foi o meu momento marciano.
RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Como você analisa a arte contemporânea? Está ela sob um signo de crise mais veemente do que em outras épocas?
ITALO MORICONI - A arte é a coisa mais maravilhosa que existe na vida, depois, claro, da experiência erótica e da alegria de conviver com amigos e familiares. Aliás, são três esferas da vida que se complementam e que se energizam uma à outra. Não vejo crise na arte, vejo sim muitas novidades na produção e circulação do artístico, como decorrência das inovações tecnológicas. A arte enquanto mercado especializado descendente das tradições da pintura e da escultura foi implodida pelas instalações e performances e passou a se confundir muito com entretenimento, por um lado, ou fortaleceu-se sua relação com uma espécie de artesanato de luxo, que aliás sempre foi desde que deixou de ser religiosa e passou a ser burguesa. Não acho que haja crise, acho que existe um contexto de superprodução e de disseminação globalizada. Uma das coisas que mais gosto de fazer é visitar exposições e museus. Também gosto muito do pensamento filosófico voltado para questões estéticas. Sinceramente, não sei como viver sem arte e acho uma perda de tempo esse pessoal que passa a vida criticando a banalidade das instalações. A banalização das instalações é em si uma questão de sociologia da arte e sobretudo de sociologia e filosofia da estética. Não sei em nome de que ou de quem falam os detratores da arte contemporânea. Ninguém é obrigado a acompanhar o movimento artístico e acho patético remeter ao passado para denegrir e não para iluminar as propostas contemporâneas. Adoro inclusive a expansão do mercado e do comércio de arte, com obras lindas e originais sendo vendidas por preços baratos nas galerias que trabalham com novas gerações. Sou fã da arte dos muros urbanos, os grafittis, o trabalho de pessoas como Os Gêmeos e Smael. Também acho a fotografia uma força poderosa, apesar de estar uma coisa meio excessiva e banal. A fotografia hoje permite que qualquer pessoa seja artista. Todo mundo tem fetiche pelas fotos que tira e exibir o que se tem é o modo de ser da cultura/comunicação contemporânea. Reality show. Art show, reality show, ficcional ou não, abstratizado ou literalizado.
RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Você é um dos pioneiros em escrever sobre a escrita íntima (diários, cartas, memórias, vida) de Ana Cristina Cesar e do Caio Fernando Abreu. Atualmente a Paula Dip lançou uma biografia sobre o Caio Fernando Abreu e o Instituto Moreira Salles um segundo sobre a Ana Cristina César. Como você enxerga esse interesse pelo biográfico no nosso mercado e, em especial, sobre esses dois autores?
ITALO MORICONI - A biografia sempre foi um gênero favorito no mercado. Ela é um gênero da história, mas uma biografia bem escrita conflui também para a literatura. Do ponto de vista do crítico literário, não há porque separar dogmaticamente romances de biografias como material analítico e comparativo. Esses dois autores continuam despertando interesse biográfico, em primeiro lugar porque suas obras continuam atraindo leitores novos, jovens ou não. Leitores novos de perfil inquieto e estético continuam sendo atraídos pela poesia prosa de Ana e pela prosa poética de Caio, quando se deparam com esses textos pela primeira vez, apesar de no caso da Ana às vezes acharem um pouco difícil, hermético. Não resta dúvida que o fim trágico dos dois acende o interesse por suas vidas, até porque, em geral, pessoas com perfil inquieto-estético passam por experiências ou fantasias ligadas a suicídio, a inadequação em relação a papéis sexuais e sociais, etc. No caso de Caio, o fato dele ter pego AIDS é visto por muitos como uma forma de suicídio, um suicídio impensado ou lento, certamente um descuido muito grande, embora se possa argumentar que talvez ele tivesse pego o vírus antes de se detectar cientificamente sua existência (que ocorreu em 83, quando a minha geração e a do Caio e da Ana C. já estava na faixa entre 30 e 40 e poucos anos de idade). Em suma, existem todas essas conexões clássicas entre homo ou bissexualidade e doença, homo ou bissexualidade e morte, literatura e morte. Tudo isso tem sido matéria de muita literatura desde o pós-romantismo e deu nas obras primas de um Thomas Mann, por exemplo, com a sífilis em Doutor Fausto e a tuberculose em Montanha Mágica, sem falar na biografia de Marcel Proust. .
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MAURO SIQUEIRA – Você foi o curador do Café Literário durante a última edição da Bienal do Livro do Rio. É sabido que a FLIP vem ganhando espaço como referência no ponto de vista do debate literário, ao passo que a Bienal, para o senso-comum, consolidou-se como um evento mais comercial. Vejo na intenção dos organizadores escolherem um “intelectual pop” como você numa tentativa de frear essa ideia e ao mesmo tempo garantir à Bienal a posição de evento-chefe da literatura nacional. Ao fim do Café Literário, acha que conseguiu recuperar esse olhar sobre a Bienal?
ITALO MORICONI - Sim, acho que fui bem sucedido nessa empreitada. Pelo menos é o que todo mundo diz. Porém, não acho que tenhamos abalado a posição da Flip. São espaços completamente diversos, as Bienais de livros, que são feiras de livro no sentido clássico da palavra e a Flip, que, como o nome diz, é uma festa literária. O universo de interlocutores de uma Bienal é infinitamente mais amplo e diversificado que o de uma Flip. Mas a Flip é um acontecimento cult de primeira. O meu Café Literário tentou ser um cult dentro da grande feira, uma oferta de chique, um momento propiciador de curtição para pessoas que gostam de curtir/pensar mas têm pouco tempo para isso. Gostei de ver que o Café atrai muito professor, revi gente que não via há séculos no Café. E tem um clima liberal e esclarecido que é muito gostoso. A Bienal do Rio é um acontecimento de identidade super carioca e eu acho que o Café Literário é um espaço que tem tudo a ver com o modo pelo qual o carioca escolarizado gosta de curtir cultura. Promove o encontro de Madureira com o Leblon e eu pessoalmente tenho muito apreço por esse tipo de junção, tem algo hiperafetivo nisso, o Café me propiciou toda uma memória afetiva, toda uma integração comunitária, que eu não sentia desde os meus tempos de líder sindical, vê se pode isso.
MAURO SIQUEIRA – A professora Flora Sussekind recentemente suscitou polêmica com um artigo no suplemento Prosa e Verso, sacudindo e reacendendo o debate sobre o papel da crítica literária à maneira como a própria crítica vem sendo realizada nos anos 90/00. Em entrevistas e conferências anteriores, você também já se posicionou a esse respeito. Poderia nos fazer uma síntese sobre o caminho que a crítica literária parece seguir atualmente?
ITALO MORICONI - A crítica literária contemporânea continua existindo muito dentro das universidades e agora na Internet, além da imprensa escrita. Existe uma tendência da crítica hoje ser mais celebratória, quase como se os críticos estivessem sobretudo interessados em fazer propaganda dos autores a que estão ligados ou de quem gostam muito. Por outro lado, quando a crítica é crítica, no sentido de restritiva ou negativa, vem em geral escrita em termos de ressentimento e até de incivilidade. Acho que falta humor às críticas negativas. Uma crítica negativa tem que ser bem-humorada, tem que deixar espaço para uma certa leveza. Acho que está faltando hoje um tipo de crítica mais profunda, baseada na experiência de leitura, mas que não seja intuitiva e sim culta. Uma crítica literária que seja ao mesmo tempo muito culta, muito informada, e totalmente baseada na experiência da leitura, escrita ela própria de maneira literária. Em suma, precisamos de uma crítica literária mais ensaística, mais relacionada com uma paixão sofisticada pela criação poética (poético aqui em sentido amplo). Gosto de um ensaísmo literário que conecte a experiência de leitura com grandes questões da vida ou do pensamento.
MAURO SIQUEIRA – Professor, crítico, ensaísta, pesquisador, poeta, escritor, curador e mais recentemente editor. Parece não haver mais fronteira a ser enfrentada no mundo cultural por você. Como está sendo a experiência de estar à frente de uma editora? Como é, para você, que tem nove livros publicados, conhecer esse outro lado? Mudou a sua forma de ver o mercado editorial?
ITALO MORICONI - Estar na editora introduziu na minha vida o diferencial do expediente diário e do exercício de uma chefia. Eu sou uma pessoa que sempre trabalhei de seis a sete dias por semana, mas o trabalho intelectual em casa tem um ritmo mais orgânico e menos maquínico, apesar de que a leitura analítica e a escrita ensaística, assim como a realização de trabalhos editoriais de qualquer tipo, cansam mais do que qualquer coisa e impõem grandes sacrifícios à vida e à saúde pessoais. Você se recupera de um dia pesado de expediente diário com uma boa noite de sono. Já o intenso trabalho intelectual, no meu caso, nunca acontece num ritmo de dia a dia, e sim em arrancadas de dois a três, quatro dias. Depois de uma arrancada dessas, que não respeita fim de semana nem às vezes a hora das refeições e de ir dormir, você precisa de pelo menos um número equivalente de dias sem nada fazer, embora esse nada fazer inclua a constante revisão e melhoria do já feito, assim como um pensar e meditar sobre o realizado e um planejar da próxima arrancada de trabalho. Claro que no meu caso esse “nada fazer”, como complemento necessário do momento intenso e exaustivo, sempre esteve ocupado pelas aulas que tinha que dar, pois, antes de ser escritor ou intelectual, eu fui e acho que ainda sou ou serei um operário, um professor de sala de aula mesmo.
Passar de autor a editor me revelou que fazer vários livros ao mesmo tempo é tão ou mais exigente do que escrever um. Então são atividades que se equivalem em termos de exigência de trabalho, a de escrever e a de editar. Editar livros é fascinante, pois eu por natureza tenho interesses de leitura bem generalistas e, apesar de ser literato, convivo muito mais com a escrita ensaística e informativa (jornalística, sociológica, histórica) do que com a propriamente ficcional e poética. Atualmente minhas horas de leitura de ficção e poesia correntes são determinadas por obrigações profissionais. Quanto ao conhecimento do mercado editorial, os dois últimos anos têm sido de intenso aprendizado para mim. A visão que eu já tinha do mercado editorial revelou-se correta, mas eu aprofundei muito mais o meu conhecimento de como uma editora funciona e de como se configuram os negócios e as logísticas nesse ramo de comércio. Mercado editorial é comércio de livros. As experiências da Bienal do Rio e da ida à Feira de Frankfurt foram os momentos em que mais aprendi sobre mercado editorial no meu período atual de vida. A experiência de editor está me obrigando a prestar mais atenção ao objeto livro e à parte gráfica. Apesar de sempre ter tido algum interesse estético pela questão, como leitor e como autor eu sempre negligenciei muito esse lado. Quando você tem mania de ler, e a origem da minha opção profissional está na mania de ler, você lê qualquer coisa, desde que prenda sua atenção, tanto faz se o livro é feio e está caindo em pedaços ou se é uma edição de luxo. Já do ponto de vista do editor, o objeto livro é tão ou mais importante que o próprio conteúdo dele. .
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ROGERS SILVA – Na coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, particularmente gostei bastante das seções De 1900 aos anos 30, Anos 40/50 e Anos 60 e, por outro lado, não gostei da seção Anos 90, de autores contemporâneos. Houve alguma pressão – seja direta ou indireta, pessoal ou editorial – na escolha de determinados autores contemporâneos?
ITALO MORICONI - Não, não houve pressão. A seção contemporânea é mais polêmica, porque não existe ainda um juízo claro e firmado por uma maioria de críticos sobre o valor relativo das obras e autores. Não há hierarquias canônicas, há apenas os indicadores de circuitos – quem foi publicado por qual editora, quem recebeu qual prêmio, quem foi resenhado por quem, quem começou em qual site, etc. Na seção contemporânea da minha antologia, foram feitas apostas. A crítica literária do contemporâneo é sempre aposta. Nada mais que aposta. Hoje tenho uma visão mais profunda da produção dos anos 90 e agora temos toda uma década, a dos anos 00, que está aí para ser avaliada já de maneira retrospectiva. A decantação canônica se dá lado a lado com o adensamento da visão histórico-relativa das obras e trajetórias autorais.
ROGERS SILVA – Fernando Bonassi, André Sant’Anna, Bernardo Carvalho, Luis Fernando Veríssimo – todos eles possuem contos na coletânea organizada por você. Acha mesmo que esses são os grandes autores contemporâneos da literatura brasileira?
ITALO MORICONI - Volto a dizer que minhas antologias foram de contos e de poemas, e não de autores, embora o dado do “quem” tenha alguma importância. Bernardo Carvalho certamente é um dos grandes autores contemporâneos, que tem inclusive revelado capacidade de se autodiversificar, fundamental para quem pretende construir uma carreira de vida como escritor. André Sant’Anna é um satirista muito interessante e original. Veríssimo é um grande escritor popular, hábil narrador, humorista de primeira linha, imaginativo e inteligente. Veríssimo é top de linha, é um intelectual que escreve para o público medianamente informado. Ele é o tipo de escritor que faz muito sucesso em vida, merecidissimamente, mas que nas histórias literárias do futuro, se estas existirem, talvez não fique entre os gênios excepcionais. Mas Veríssimo é modelar no uso da língua e por isso sua leitura é imperativa, incontornável e vai ficar como acervo sempre reutilizável. Como dizia Antonio Candido, uma literatura, para existir, tem que ter muitos escritores como Veríssimo. Ele é patrimônio nacional. Fernando Bonassi teve uma aparição inicial muito promissora, mas no momento não sei muito bem para onde ele está indo como escritor.
ROGERS SILVA – Agora uma pergunta indiscreta... Nos últimos dez anos – sobretudo após a publicação da coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por você – multiplicaram-se as coletâneas dos “melhores”. Tudo indica que, comercialmente, esse tipo de obra é lucrativo, tanto para a editora quanto para o organizador. Procede? Sinceramente, ganhou muito dinheiro com as coletâneas organizadas, uma vez que parecem ter sido muito vendidas?
ITALO MORICONI - Não, não ganhei muito dinheiro. Ganhei dinheiro, mas não muito. Nada que pudesse me levar a abandonar meu salário de professor. Sou organizador, portanto o que recebo como royalties é uma parcela ínfima do que recebe um autor. Em muitos casos, o que um organizador de antologias recebe é simplesmente uma paga única pelo trabalho. .

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O BULE – Professor Italo Moriconi, O BULE, em nome de todos os seus colunistas, colaboradores, parceiros e, principalmente, leitores, gostaria de agradecer pela entrevista, pelo tempo investido e pelos exemplares cedidos para sorteio. E esteja à vontade para nos deixar a sua opinião sobre essa singela experiência. Mais uma vez, obrigado!
ITALO MORICONI - Desejo a vocês milhões de acessos.
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Caro leitor, serão sorteados 2 (dois) exemplares das coletâneas organizadas por Italo Moriconi: 1 (um) de Os cem melhores contos brasileiros do século e 1 (um) de Os cem melhores poemas brasileiros do século. Para participar do sorteio:
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