5 de jun. de 2010

Fernando Pessoa: A alquimia e a poesia

Por Rogério Mathias Ribeiro
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A terra é feita de céu
A mentira não tem ninho
Nunca ninguém se perdeu
Tudo é verdade e caminho
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A influência esotérica pode ser notada em diversas passagens da obra pessoana, entretanto, iremos nos concentrar em alguns poemas esotéricos que mostram como Pessoa faz a transição de estudos teosóficos e concepções ocultistas para a poesia. Procuraremos neste capítulo fazer a análise de alguns poemas pessoanos tentando estabelecer uma relação entre alquimia e poesia. Sobre a alquimia, voltamos a uma definição de Dal Farra: A alquimia (...) nada mais é que um simbolismo metalúrgico referente a factos do espírito. Ela encerra, portanto uma metafísica, a “conversão filosofal” de um ser em outro ser, a troca das naturezas por meio da relação que o homem mantém entre seu corpo e seu “eu”[2]. Sendo assim, inicialmente, tentaremos compreender a posição de Pessoa em relação ao seu corpo e seu “eu”, segundo o viés ocultista. Os poemas cujos versos aqui são trabalhados como ilustrações do diálogo entre teosofia e poesia, entre outros também esotéricos, estarão na íntegra no anexo deste trabalho.
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Em princípio, partiremos do entendimento do poeta sobre a existência física (corpo) e a existência invisível (“eu”). Em diversos poemas esotéricos, Fernando Pessoa apresenta a existência terrestre humana como sombra, sono, como local de exílio; a realidade terrestre concreta é vista como ilusória, um sonho. Podemos observar esse entendimento em poemas como o ipse escrito em 09/05/1934: Neste mundo em que esquecemos/ Somos sombras de quem somos,/ E os gestos reais que temos/ No outro em que, almas, vivemos,/ São aqui esgares e assomos[3].
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No mundo terrestre, estaríamos sem a memória do verdadeiro mundo, em que somos almas, o nosso “eu” verdadeiro não estaria aqui, mas em outro plano, no plano físico existem apenas vestígios do “eu” verdadeiro[4]. Em Iniciação, temos mais um exemplo: Não dormes sob os ciprestes,/ Pois não há sono no mundo./ O corpo é a sombra das vestes/ Que encobrem teu ser profundo/ Vem a noite, que é a morte/ E a sombra acabou sem ser.[5]. O dormir entre ciprestes, que seria a morte do corpo físico, na verdade, não é a morte e sim a ausência da sombra (próprio corpo físico) que encobre o ser profundo, o eu verdadeiro, a vida terrestre finda sem nunca ter existido, a morte física não é sono, mas revelação; a ideia persiste com mais ênfase no poema intitulado “No túmulo de Christian Rosenkreutz”: Quando, despertos deste sono, a vida,/ Soubermos o que somos, e o que foi/ Essa queda até corpo, essa descida/ Ate á noite que nos a Alma obstrui (...)[6]. Nosso despertar só ocorre com a morte do corpo físico, pois este obstrui a verdadeira alma que desceu a este plano e manteve-se obstruída pela escuridão; a existência física é, na verdade, a noite que não nos permite que enxerguemos nossa verdadeira alma.
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Para os iniciados, a vida terrestre é apenas um reflexo da vida espiritual; o “eu terrestre”, passageiro, está ligado ao seu “eu verdadeiro”, mas não pode enxergá-lo pois encontra-se imerso na escuridão. Apenas aqueles que veem a luz possuem esse conhecimento e sabem que através de um processo de autoconhecimento espiritual é possível uma aproximação do “eu verdadeiro”. Para que seja possível essa aproximação, é necessária uma transformação, é preciso libertar-se da sombra, do eu terrestre; dessa maneira, somente através da alquimia o homem pode se transformar em seu “eu” verdadeiro que permanece oculto.
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Para alcançar o “eu” profundo no plano terrestre, o poeta deve seguir pelo caminho alquímico. Yvette Kace Centeno, ao comentar sobre a lei à qual Pessoa estaria subordinado, diz que essa lei:
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(...) apresenta uma visão dualista do mundo, que é o mundo da mistura (não puro), a esfera mais baixa da emanação no universo criado. A perfeição, para os cátaros como para os gnósticos, supõe a androginia, o regresso ao estado do Adão primordial descrito no Génesis. O corpo subtil desse Adão deve ser glorificado, em detrimento do corpo material do outro, já corrupto, do homem”[7]
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O corpo só voltará ao seu estado de pureza, ao seu “eu” verdadeiro, se passar por um processo alquímico. Ou seja, para retornar ao seu estágio primeiro, são necessárias transformações que podem ser obtidas através da via poética. No caso pessoano, continuaremos com Centeno:
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A iniciação única e sempre a mesma, que encontramos no pensamento filosófico como na actividade literária, é a do desdobramento que na Criação se verifica desde o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, kabalistas, alquimistas – todos se dizem herdeiros de uma tradição hermética. Desdobramento, multiplicação, que só depois de assumidos e esgotados permitem a unidade. O poeta, adepto por excelência, tem o desejo (ora mais ora menos reprimido) desse primeiro tempo de androginia perfeita. Mas só quando esgotar o mundo do possível pode sonhar recuperá-lo.[8]
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Sendo assim, consideramos que a heteronímia pessoana pode ser uma via alquímica, sentir tudo de todas as maneiras, esgotar-se dentro de todas as possibilidades. Seria um dos métodos utilizados por Pessoa para a obtenção do ouro – o exercício da hetereronímia, é neste sentido, um verdadeiro exercício espiritual não confessado[9], diz Centeno. Dessa maneira, concebemos que Pessoa conhecia a diferença entre o “eu terrestre” e o “eu verdadeiro” e sabia que só alcançaria o segundo por meio da alquimia que seria feita através de sua própria poesia. Cabe ainda uma citação de Dal Farra acerca do assunto: A transmutação, processo que leva à morte iniciática e a ressurreição, não é uma alteração, mas uma integração, realização e consumação do que nele estava imperfeito.[10]
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A relação alquímica entre poesia e ocultismo não fica restrita apenas à tentativa de purificação espiritual utilizando a via poética. A própria filosofia ocultista pode transformar-se em criação poética. Uma citação de um ritual da ordem templária presente no espólio do poeta é de grande valia para que possamos entender o que era revelado aos iniciados e como a filosofia ocultista se transmutava para obra de arte poética. Nela, o Padre revela ao neófito:
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Recebestes a luz da Ordem em que éreis cego. Ides receber agora sua Veste de que éreis nu. Agora que recebestes a Luz e a Veste da Ordem, estareis lembrado de que vos falta a Guarida da Ordem. A luz não vos deu mais que luz; mas a luz passa e vem a noite e vós não a tendes. A Veste não vos deu mais que a Veste; por baixo dela sois nu como éreis. A Guarida porém vos dará o onde tenhais luz e abrigo, ainda que na guarida estejais nu... Cego, nu e pobre entrastes na vida. Cego, nu e pobre entrareis na morte. Não há, porém, vida nem morte: não há Neófito, senão vida.O que vos sucedeu ao nascer, vos sucederá ao morrer: entrareis na vida. Isto é verdade; o entendimento dela é convosco, assim como o regrar-vos por ela como deveis.[11]
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Podemos notar que o poema intitulado “Iniciação” é a releitura do ritual acima descrito, fundindo o conhecimento iniciático com o fazer poético:
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Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
......
++++++Neófito, não há morte
.[12]
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Alguns poemas de Pessoa tratam das dificuldades que o caminho iniciático, o mais perfeito de todos, impõe. “Na sombra do Monte Abiegno”[13] é um deles: Na sombra do Monte Abiegno/ Repousei de meditar./ Vi no alto o alto Castelo/ Onde sonhei de chegar./ Mas repousei de pensar/ Na sombra do Monte Abiegno. O castelo, o símbolo da iniciação mais alta, é o motivo dominante do poema, ele é a finalidade do caminho purificador, enquanto o Monte Abiegno é, para a Maçonaria, um elevado lugar de purificação. Pessoa, nesse poema, mostra a busca não só do grau mais alto da iniciação, mas, além dessa, está a busca da realização da poesia mais alta para atingir este ponto. O caminho não é fácil e o poeta não se sente em condições de, por ora, chegar ao Castelo: Talvez um dia, mais forte/Da força ou da abdicação,/Tentarei o alto caminho/Por onde ao Castelo vão./Na sombra do Monte Abiegno/Por ora repouso, e não. A impossibilidade de atingir o conhecimento espiritual mais alto e a perfeição suprema da sua arte incomoda o poeta: Quem pode sentir descanso/Com o Castelo a chamar?/Está no alto, sem caminho/Senão o que há por achar./Na sombra do Monte Abiegno/Meu sonho é de o encontrar. Dada a impossibilidade de atingir o Castelo, onde está a verdade, o plano celeste e a arte mais perfeita, há o lamento: Mas por ora estou dormindo/ Porque é sono o não saber./ Olho o Castelo de longe,/ Mas não olho o meu querer/ Da sombra do Monte Abiegno/ Que me virá desprender? O Castelo nesse poema, apesar de visível, parece utópico e distante, não há a certeza de alcançá-lo. Nessa ótica, podemos perceber que, ao não se atingir o objetivo, o que fica é a angústia e a inquietação diante da impotência de alcançar a verdade. Esses traços estão presentes na própria vida de Pessoa, já que, apesar de todo o conhecimento adquirido através do ocultismo, e de uma criação poética do mais alto nível, a realização de seus projetos não chegou a ser alcançada de maneira plena.
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Pessoa e a missão
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A preocupação com o ocultismo não se fez presente somente nos poemas de Pessoa. Da teosofia, desenvolvem-se ligações que aproximam sua teoria poética de seu pensamento político-sociológico. A teoria estética do poeta está inserta num conjunto intelectual muito mais amplo. O caminho para a libertação de Pessoa, como pensador e como poeta, permanece em seus estudos ocultistas e depende da iniciação. O poeta libertado terá condições de trazer, através de sua produção de artística, a palavra nova. O seguinte fragmento do espólio sobre o ocultismo torna-se importante para a interpretação dos poemas esotéricos:
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O verdadeiro significado da iniciação é o de o mundo em que vivemos ser um símbolo e uma sombra, o da vida que conhecemos através dos sentidos ser uma morte e um sono ou, por outras palavras o que vemos ser uma ilusão. Iniciação é o apagar – um apagar parcial e gradual- dessa ilusão. A razão do seu segredo é a de que a maioria dos homens não está adaptada para o compreender e, por essa razão interpretá-la-ia mal e criaria confusões se ele fosse tornado público[14].
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As referências que Pessoa faz ao dever de ser discreto fazem parte implicitamente dos conhecimentos dos pesquisadores do oculto. O poeta se considerava como um daqueles mortais a quem as verdades escondidas das ciências ocultas são reveladas, por pertencerem aos eleitos. Pessoa, como homem de gênio, tem acesso ao verdadeiro significado da iniciação, conhece os segredos dos símbolos e compreende que a vida que conhecemos é o sono da outra vida. Porém, dentro da missão de Pessoa, não está só a evolução, o autoconhecimento individual e a revelação de um caminho teosófico através da poesia, há algo ainda maior e mais ambicioso.
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Fernando Pessoa propõe em Mensagem um quinto império universal baseado em Portugal. Esse império seria fundado a partir do retorno de Dom Sebastião e seria diferente dos quatro que o antecederam. Clécio Quesado, em sua análise do poema “Quinto Império” em Mensagem, diz:
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O quinto seria um império cultural e universal que, sincrético por essência, haveria de incluir e sintetizar os quatro anteriores. Seu eixo seria Portugal que, tendo sido já um império através da expansão e da conquista, estaria predestinado a ser um império de cultura universalista, o primeiro, verdadeiramente, de dimensão mundial (...) a perfeição, universalmente sugeria pela simbologia do número cinco, seria atingido com o devir da quintessência do império da espiritualidade. E esta sugestão é, no presente poema, tanto mais realizada se verificarmos que a sua estrutura de manifestação reforça este aspecto: o poema é composto de cinco estrofes de cinco versos cada[15]
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O Quinto Império, universal, cultural, espiritual, estaria atrelado ao retorno de Dom Sebastião, evocado em Mensagem. Esse retorno não estaria, para Pessoa, citando as profecias de Bandarra, tão distante:
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No Terceiro Corpo das suas Profecias, o Bandarra anuncia o regresso de D. Sebastião (pouco importa agora o que ele entende por “regresso”) para um dos anos entre 1878 e 1888. Ora neste último ano (1888) deu-se em Portugal o acontecimento mais importante da sua vida nacional desde as Descobertas; contudo, pela própria natureza do acontecimento, ele passou e tinha de passar inteiramente despercebido.[16]
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Podemos imaginar que o acontecimento tão importante que se deu para a vida nacional foi o nascimento do próprio Fernando Pessoa em 1888 e a natureza do acontecimento não seria naturalmente percebida de imediato. O nascimento de Pessoa é o regresso de Dom Sebastião e isso só poderá ser notado tardiamente, mas a menção feita pelo poeta faz-nos acreditar que ele conhecia e estava preparado para a sua Missão e encontrava-se consciente dela. Além disso, Pessoa anuncia o aparecimento do poeta ou dos poetas (o próprio Pessoa foi poeta e poetas) supremos, que substituiria Camões como o principal poeta português, o Super-Camões:
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E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto?[17]
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No mesmo escrito, um texto intitulado “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, Pessoa anuncia acontecimentos extraordinários que iriam criar um supra-Portugal em um futuro glorioso, além da imaginação. E as almas portuguesas deveriam estar preparadas para a Missão:
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Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar, não se pode dizer neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previsão pareceria um lúcido sonho de louco.Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.[18]
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O Super-Camões seria o responsável por essa verdadeira revolução. Em Essay on initiation, temos um documento definitivo que revela a hierarquia dos poetas, fazendo analogia entre poetas e iniciados, teosofia e produção artística. Pensamos ser de fundamental importância, no âmbito do que tentamos demonstrar, a transcrição de um dos trechos:
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Seja qual for o número de graus, externos ou internos, na escala que ascende até à verdade, podem ser considerados três – Neófito, Adepto e Mestre. Na realidade os graus são dez – quatro sob o de Neófito, três sob o de Adepto e três (por assim dizer) sob o de Mestre...
O Neófito, através dos graus que essa expressão descreve, é essencialmente um aprendiz; o caminho que lhe compete conduz à completação dos conhecimentos na esfera externa. No Adepto, através dos seus três graus, existe um progresso de unificação do conhecimnento com a vida. No Mestre há, uma destruição desta unidade assim alcançada em favaor duma unidade mais alta.
Uma comparação com coisas mais simples creio que tornará isto mais claro. Supunhamos que a finalidade da iniciação é a escrita da grande poesia. O estádio do Neófito será a aquisição de elementos culturais com que o poeta terá que lidar ao escrever poesia – sendo, grau por grau e no que parece ser uma analogia exacta: 0) gramática, 1) cultura geral, 2) cultura literária em particular.
O estádio do Adepto será, se continuarmos a utilizar a mesma analogia: 5) a escrita de poesia lírica simples, 6) a escrita de poesia lírica complexa, 7) a escrita de poesia ordenada, ou poesia lírico-filosófica, como em Ode. O estádio do Mestre será, pelo mesmo processo: 8) a escrita da poesia épica, 9) a escrita de poesia drmática, 10) a fusão de toda poesia, épica e dramática, em algo para além de todas elas.
[19]
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Esse trecho é muito interessante e merece comentários. Pessoa compara o iniciado ao poeta; ambas as escalas possuem dez graus. Curiosamente, os graus três e quatro da escala dos poetas são omitidos por Pessoa. Seguindo essa escala, os poetas depois de adquirirem conhecimentos de gramática, cultura geral e literária seguiriam direto para a escrita da poesia lírica. Por que Fernando Pessoa teria omitido os degraus três e quatro? Para Georg Lind, [...] indica, pelos vistos, que os últimos graus do estado de Neófito eram dispensáveis para o poeta.[20] Não concordamos com esse entendimento e arriscamos que os graus três e quatro não foram revelados pois fazem parte justamente do conhecimento oculto, aquele que não está aberto a todos. Depois de adquirir o necessário nos três primeiros graus, faltaria ainda a aquisição da sabedoria oculta, da cultura oculta, e isso foi, na nossa opinião, propositalmente escondido por Pessoa. Correndo aqui um risco ainda maior, entendemos que uma outra analogia, situando Pessoa na escala dos poetas, pode ser feita da seguinte forma: os graus zero, um e dois fazem parte da formação geral do poeta, sua aquisição inicial de conhecimentos no princípio da vida; os graus três e quatro seriam os adquiridos por Pessoa através da sabedoria relacionada ao ocultismo e a teosofia. Dessa forma, já Adepto, Pessoa chegaria ao grau cinco, poesia lírica simples, escrita por Caeiro; grau seis, poesia lírica complexa, escrita por Campos e, no grau sete, poesia lírico-filosófica, como na “Ode”, escrita por Reis. Já Mestre, Pessoa alcançaria a poesia épica do grau oito através de Mensagem; a poesia dramática no grau nove através do próprio drama dos heterônimos; e o último degrau, o décimo, que trata da fusão de toda poesia, épica e dramática, em algo para além de todas elas, seria o próprio caminho da alquimia, transformando sua laboriosa produção poética em algo maior, mais alto, ponte para a compreensão do divino. Somente um Super-Camões poderia arcar com a responsabilidade de se libertar, tranformando-se e, não satisfeito, partir, como homem de gênio, para uma transformação muito maior, a da própria pátria, desenvolvendo um programa utópico como veremos em seguida.
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Um outro documento importante, intitulado O governo dos 300 mostra as várias teorias estéticas do poeta e a proposição de um plano para a regeneração da Europa, através do qual se pode ver que a teosofia forneceu a Pessoa uma ponte espiritual, ligando as várias áreas do seu pensamento – poesia, estética e sociologia. Nesse ensaio, percebemos um desejo, ainda que utópico, de renovação espiritual das tradições europeias:
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Repensaremos a civilização.Reconstruiremos o paganismo, para depois, sobre ele, podermos reconstruir o cristianismo. Faremos com que nosso espírito percorra de novo, como quem revê uma obra escrita, os capítulos sucessivos da civilização da Europa. Emendaremos o capítulo Grécia, livrando o espírito pagão das superstições pagãs (...) Emendaremos o capítulo Roma, livrando o espírito imperial do seu tipo de conquista imperial para inserirmos a conquista válida, a conquista cultural. Emendaremos o capítulo Cristo (...) afirmando o Salvador, não como realidade histórica, mas como realidade espiritual, e a sua Igreja, não como sociedade, mas como fraternidade, estando o Cristo não em todos os homens como humanidade, senão inteiro em cada homem como tudo. Emendaremos o capítulo Nacionalismo, tirando-lhe o sentido opositor, e afirmando que as nações existem como corpos mentais da família civilização (...) Emendaremos por fim, o capítulo Universalismo, convertendo as nações extra-européias, de prolongamentos ou oposições ao espírito da Europa, em províncias ativas da mesma Europa, não impondo a Europa ao mundo, como até aqui, senão fazendo Europa do mundo.[21]
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Este programa utópico abarca as ambições artísticas e sociológicas de Pessoa. O poeta lançava a sua utopia de uma missão civilizadora lusa, em conformidade com o programa. A última das cinco eras por que a humanidade teria de passar (segundo a profecia de Daniel) seria preenchida, segundo o poeta, pela missão espiritual e universal que o destino conferira ao seu país, como foi escrito em Mensagem: (...)E assim, passados os quatro/ Tempos do ser que sonhou,/ A terra será theatro/ Do dia claro, que no atro/ Da erma noite começou./ Grecia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão/ Para onde vae toda edade/ Quem vem viver verá a verdade/ Que morreu D. Sebastião?[22]
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Para Fernando Pessoa, o retorno de Dom Sebastião, que tem em si as energias de todo um povo concentradas, seria o retorno da glória de Portugal através daquele que representaria o advento de um novo império; nesse ponto, levantamos a presença de um outro tipo de alquimia – Pessoa se transformar-se-ia em Dom Sebastião, naquele que representa as mais altas aspirações lusas, naquele que carrega a tradição e o apoio de seu povo, esse Pessoa (por alquimia transformado em Dom Sebastião) seria mais perfeito ainda do que o rei que desapareceu nas areias da África, pois esse novo Dom Sebastião lideraria seu povo e a Europa a partir de um império cultural e espiritual, em vez de tentar se impor através das armas; o novo desejado, como homem de gênio, estaria pretendendo iluminar a consciência humana.
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Na linguagem dos teósofos, o poeta descreve a missão dos homens de gênio em “300”: Delegados, e anjos, de certo modo, de particular do nosso mundo especial, elles combatem, com forças superiores, os exilados dos entre-mundos, os filhos do espaço nocturno...[23]
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As obras dos gênios que representam, como delegados e anjos, um mundo especial e têm, por missão, combater com forças superiores a escuridão, o espaço noturno, e aqueles que estão exilados nesse espaço poderão enxergar a luz através desses delegados. A poesia, área de atuação de Pessoa, participa da autolibertação do poeta e da libertação do homem em geral, contribuindo para elevar seu espírito e sua vida, iluminando também o espírito dos homens que não tiveram ainda a oportunidade de ver a luz.
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1. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio
de Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.94.
2. FARRA, Maria Lúcia Dal, A alquimia da linguagem – leitura da cosmogonia poética de Herberto
Helder, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Colecção Temas portugueses, 1986, p.146.
3. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio
de Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.112.
4. Os fundamentos da alquimia são de origem aristotélica e neoplatônica. (FARRA, Maria Lúcia Dal, A alquimia da linguagem – leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Colecção Temas portugueses, 1986, p.146).
5. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de
Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.95.
6. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de
Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.124.
7. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.11.
8. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.10.
9. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.11.
10. FARRA, Maria Lúcia Dal, A alquimia da linguagem – leitura da cosmogonia poética de Herberto
Helder, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Colecção Temas portugueses, 1986, p.146.
11. Apud LIND, 1981, p. 284.
12. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de
Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p. 95.
13. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de
Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p.96.
14. Apud CENTENO, 1985, p.60.
15. QUESADO, Clécio. Labirintos de um livro à beira-mágoa (Mensagem de Fernando Pessoa). Rio de
Janeiro: Elo, 1999, pp. 140,141,142.
16. PESSOA, Fernando. Sobre Portugal – Introdução ao problema nacional (Recolha de textos de Isabel Rocheta de Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa, Ática, 1978; p.174.
17. PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguillar, 1986, p. 366.
18. PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguillar, 1986, p. 367.
19. Apud LIND, 1981, p.279
20. LIND, Georg Rudolf. Estudos sobre Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1981, p. 280.
21. Apud LIND, 1981, p. 301.
22. PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de
Janeiro: Nova Aguillar, 1986, p. 18.
23. Apud CENTENO, 1988, p. 131
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Parte integrante da dissertação de mestrado Esoterismo e ocultismo em Fernando Pessoa: Caminhos da crítica e de poética, de Rogério Mathias Ribeiro.
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Rogério Mathias Ribeiro - Graduado em Letras (Português/ Literatura) pela Uerj, especialista em Literatura Portuguesa pela Uerj e Mestre em Letras (Literatura Portuguesa) pela UFF. Taurino de 37 anos, carioca, residente no Rio de Janeiro-RJ, torcedor do Botafogo e professor de Ensino Médio, estudioso da Literatura Portuguesa e do Ocultismo. Contato por e-mail: roger7332@hotmail.com