6 de mai. de 2010

'Mulheres' - parte 12

Por Claudio Parreira


BACH, SUÍTE nº 3

A VAGABUNDA ACABOU DE CHEGAR: abre as cortinas, depois a janela, olha pra mim e sorri, veja só. Eu murmuro um insulto e ela começa a tortura de todas as noites: senta-se na beirinha da cama, de pernas abertas. Tira um sapato, depois outro. Eu vejo tudo isso suando, a vertigem querendo me fazer despencar os treze andares. O Cristo que tenho na sala há meses cerrou os olhos, mas ainda assim percebo um leve rubor em suas faces. E não é pra menos: depois dos sapatos, ela arranca as meias quase com fúria, joga-as para além do alcance dos meus olhos. A calcinha ela desce até a altura dos joelhos — e se levanta e fica a passear pelo quarto, provocadora: quer mesmo que eu veja, a cadela. Por um breve momento ela desaparece, deixando atrás de si apenas um rastro de sombra. Meu coração dispara, não caibo em mim. Mas logo em seguida ela retorna, nuinha, sorridente. Seus pêlos são claros, abundantes, os bicos dos peitos fitam meus olhos. E ela sorri, e fala, alto, para que o som atravesse a distância de abismo que nos separa:
— Vem!
Eu olho para a rua, treze andares abaixo: outras pessoas estarão vendo o que eu vejo?
— Vem! — ela repete. — Tá frio aqui.
Dizem que o prédio no qual ela mora tem fama de familiar. Se os outros moradores soubessem... Se eles soubessem que a vaquinha se exibe com freqüência para o morador do prédio em frente, o que diriam, o que fariam? Reuniriam o Santo Ofício do condomínio e a condenariam à fogueira, à vala comum do desprezo conferida às vagabundas?
"Vai lá e acaba com isso!" — vocifera o Cristo de olhos agora bem abertos. "Vai lá e acaba com ela!"
Olho pela janela: nua, ainda sorrindo, ela dança, leio em seus lábios que ela me chama. A mão direita do Cristo aponta na direção do meu faqueiro. É assim que deve ser, compreendo.
Desço os treze andares pela escada, com a impaciência do dever a cumprir. A faca de cortar carne dorme silenciosa no bolso do meu casaco. Na rua, uma confusão de luzes e cores, sons e gritos, apitos de trânsito.
Diante do prédio dela arrisco uma olhada: na rua, de baixo, nada se percebe, nem mesmo o leve ir e vir da cortina. "Vai lá e acaba com ela!" — é o que eu ouço.
Quando chego finalmente ao seu andar, noto a porta entreaberta e um raio de luz traz aos meus ouvidos a Suíte n.o 3 de Bach: ela me aguarda, com certeza.
— Enfim, o amante! — ela diz sorrindo, à porta, sempre sorrindo. — Por que demorou tanto?
Certifico-me se a faca ainda descansa no mesmo lugar, e falo:
— São as escadas, muitos andares.
— Já inventaram os elevadores, sabia?
O apartamento é nada mais que um quarto amplo: a cama ocupa um terço do espaço e o resto são um pequeno armário embutido, uma pia e um fogão minúsculos, pilhas e pilhas de discos e livros. Nenhuma mesa ou cadeiras, um banheirinho inenarrável e paredes tão nuas quanto ela.
— Eu ou a casa?
— ?
— Você veio aqui por mim ou veio apreciar a casa?
"Vai lá e acaba com ela!"
— Nem uma coisa, nem outra.
— O quê, então?
Sento-me na beira da cama, no mesmo lugar onde ela estivera sentada há pouco — e de lá vejo perfeitamente o meu apartamento, e um Cristo não mais crucificado, mas exultante.
— Isto — digo eu, exibindo a faca que dormia em meu bolso.
Ela se afasta de mim, cautelosa. Seu corpo perde um pouco de luz, seu rosto ganha contornos de máscara, seu sorriso se apaga como numa morte antecipada.
— É assim que você gosta? — ela diz finalmente. — Então vem, me corta, eu juro que não grito.

Com o fim da Suíte n.o 3 de Bach deu-se também por encerrada a minha missão. O vermelho predomina agora no silêncio que nenhum sorriso mais abriga. Estendidos na cama, lado a lado, um corpo vazio e a faca. E no meu apartamento, nenhum Cristo: apenas a figura nua do diabo dançando e sorrindo.