Por Mauro Siqueira
Não vi quando ela entrou e perguntou: “Tem alguém aqui?”. Continuei meu desenho no caderno. Enquanto todos nós esperávamos a boa vontade do professor de aparecer, eu rabiscava com ódio o papel, a grafite 5B do meu lápis assoviando e brilhando. “Bom dia” - já quase meio-dia quando o puto entrou -, levantei a cabeça e me deparei com ela... na verdade, com as suas costas... Não me importo com o resto, a voz, sorriso ou brilho de olhos. Sem inícios, meios e fins: não vou cair em clichês. Não faria mais nada naquela sala a não ser contemplar, ajeitei minha cadeira ficando bem certinho à sua: vestindo tomara-que-caia amarelo, deu àquelas costas largas o status de painel - um muralismo de D. Rivera!
Ereta. Marmórea, quase. Uma escultura. No início parecia imóvel, mas se você reparasse bem, mexia-se naquela posição, o pescoço acompanhando os passos do professor; os ombros e pescoço, aos poucos, foram relaxando, afinal aquela primeira semana de aula era desconfortável para todo mundo – calouro ou veteranos, e ela podia ser um ou outro. No meu caderno, o desenho da minha versão de “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli, dando lugar àquelas costas e sua dona de cabelos claros e curtos sob a nuca, num desses cortes modernosos da moda, aqueles pelinhos finos... não os tinha - era apenas a pele que, agora, de anverso para o público, exibia desnuda uma sinuosa silhueta alva, a coluna delineada e no seu término, uma borboleta tatuada... Ah!, Deus, lembrei de Phillip Pullman e de seu livro...; “Que linda borboleta”, lembrei de dona Eusébia e sua filha coxa em Machado de Assis (esta ao contrário daquela, não era preta, era verde). A tatuagem, bem na base que divide o fim do pescoço e o início das costas (qual nome terá essa área?); passei a observar os movimentos: em função da escrita, as costas moviam-se num compasso quase musical, saliente; aquele osso triangular que se acopla na parte posterior dos ombros: as omoplatas - um nome tão feio para algo tão bonito!
Deveriam se chamar asas!
Os gestos rápidos e bruscos davam-lhe tal qualidade; asas de uma borboleta já descrita. Entenda-se que não havia nada de mágico naquele ser à minha frente, nada ideal; não fazia ideia do seu rosto e não me importava. Eu estava completamente fora dos eixos, de mim! ao olhar aquelas manchinhas que recobriam toda a superfície, alguns poucos fios loiros, espinhas - muitas - e que lindas espinhas, sentia o perfume da pele, latescências novas de uma área, até então tão, tão... anti-erógena – minha voz até ressoa diferente. Uma pele coberta de imperfeições perfeitas, e eu, tentado a fazer besteiras; sentia-me cada vez mais perto, compelido a estar de fato pele a pele com aquela estranha Galateia! Parecendo perceber a todo o momento passava a mão pelas costas, negava-me por instantes a sua visão, num jogo traiçoeiro.
Eu não podia mais, não sou dado a observações demasiadas e... aliás, uma zona erógena sim! Afinal, em que lugar os vampiros arrebatam as mocinhas lânguidas, indefesas: na base do pescoço. Vi a minha mão tal qual a de Nosferatu: a milímetros do pescoço da vítima, no clássico filme alemão... e como nele recolhi meu gesto assim que pressenti... No ombro, repousou uma das mãos, negaceando-me! - era tão lindo gesto! e... surpresa, no dedo médio, outra borboleta (era um sinal), minha mão quase tocou a dela, corajosamente a minha vagava pelo ombro desnudo da desconhecida quase a tocar-lhe, eu não estava nem aí para o resto do mundo, quanto mais da turma, afinal era uma eletiva: eu queria aquelas costas! Meu estômago se revirava, parecia ter borboletas voando dentro dele. Um novo desejo me fez recolher a mão, uma sede por aquela pele me fez aproximar os lábios em direção àquela borboleta... inclinei para frente, senti os olhos da pessoa do lado (e do outro também) “Gente!”, alguém disse, o professor no seu latim, eu segui em frente, já via os poros, senti mais abrasadamente o cheiro do creme hidratante, aquela nudeza, aquela borboleta, fixei o olhar no desenho, parecia vivo, de um brilho verde-esmeralda, verde-parnaso, crescente, pungente, como o das asas do inseto - o toque era inevitável. O professor fez uma pergunta, ela ergueu a mão em que tinha o anel: “Femina pulchra”, respondeu com orgulho na voz. E então, os meus lábios naquelas costas...
Mal toquei na pele desejada e, ainda com a mão estendida, virou-se sobressaltada; e antes de sentir o anel com sua borboleta no meu queixo ou de borrar de sangue a minha Vênus flanqueada desenhada no meu caderno, vislumbrei a borboleta verde desgrudar-se violentamente, levando consigo um pouco daquela pele, ao voar pela janela e levar com ela toda a sua beleza e minha sanidade.