30 de mar. de 2010

O monstro


Por Mauro Siqueira

  O monstro desceu incandescente bem no meio do salão de dança, alguns poucos pararam de dançar e viram ele descer ainda rodopiando, vestido de branco em rendas que mão humana alguma poderia maquinar, tal eram a trama e os motivos que ­somente deuses ousariam. O monstro não gosta de ser olhado; pôs-se de lado, nas sombras, a beber e vigiar. Eu, do outro lado do baile, fui o único a perceber que aquele monstro tinha os olhos azuis. Os azuis mais infernais que vi em toda uma curta vida de anos mal-vividos –antes, acendi um cigarro, nem sob a fumaça o monstro evanesceu. Queria crer ser mais uma aparição etílica de tantas outras que já tivera, mas não, tudo aquilo acontecia. Será que só mesmo eu via a fera, ou também outrem? Eu fiquei ali, escondido debaixo do meu panamá gaiato e velho; fumando então vi que minha mão tremia: o monstro dançava sozinho e todos à volta abriam espaço. Era algo de... de não-gente naqueles passos, naqueles gestos de tal modo que fiquei alumbrado – quantos pés haveria de ter aquela criatura? –, havia intenção naquela dança, sim havia, era o de me reter nos seus olhos; o monstro percebeu a minha vigília, eu fora o escolhido. Do palco, o trio de músicos trocaram o essa por aquela música, em minha mesa as formigas começaram a brotoejar em sinal ao meu nervosismo; naquele instante de conflito, procurei os olhos do monstro, não estavam mais lá... vasculhei todo o salão: sumira. Para sempre? Assustado, ainda procurando, quando dei por mim era tarde, não sei de onde viera: fui arrastado já semi-morto para o meio da pista, ou outros abriram caminho, na clareira aberta meu corpo jazia, levantei tonto sem entender, sentia os olhos arregalados sobre mim e gesticulava tolamente movimentos tolos... Eu não me pertencia mais; era tarde muito tarde. Fui vítima fácil. O dançado da morte começara e o monstro me levava; o trio não parou a música; os outros, pouco a pouco, retomaram seus pares e lugares e voltaram ao bailado. E eu?, eu sob a ventura daqueles olhos azuis do inferno, que me bebiam de arrasto, nada podia fazer senão anuir a tudo que ele mandava. Aquele monstro... cheio das nove-horas... disfarçando-se de anjo alvo e louro, aqueles olhos azuis do inferno, aquela voz das queimaduras de rasgar o coração da gente. Por um momento enganou e me fizerem esquecer a sua natureza; me fez dançar por toda a noite, tão somente dizendo seu nome ao amanhecer, e como é comum dos monstros, fugir com os primeiros raios do Astro para voltar somente quando um desavisado, como eu, abrisse os olhos para ele entrar... Mas aí já seria tarde: como eu, já estaria apaixonado.

 Conto de abertura do livro Simplesmente complicado, ainda inédito.