27 de mar. de 2010

'Mulheres' - parte 07

Por Claudio Parreira

MARIANNA

TUDO ACONTECE AO CONTRÁRIO em Marianna: os galos cantam ao cair da noite, os carros avançam de marcha-à-ré e sempre chove pra cima. Quando chove.

Apesar disso, a vida em Marianna é considerada normal por todo mundo. Os relojoeiros atrasam os relógios com naturalidade e as cenouras crescem todas com suas raízes voltadas para o sol, que no verão surge sempre à meia-noite.

Quando nascem, os velhos não dão trabalho algum: sabem todos que em breve chegarão à idade adulta, e que depois disso uma adolescência repleta de surpresas e delícias lhes está reservada. Este, aliás, é o maior orgulho da cidade: o fim da velhice só traz alegrias em Marianna.

O único problema da cidade são os descontentes. Sim, há descontentes em Marianna, aos milhares. Eles reclamam de tudo, não concordam com nada e acham que a vida de verdade está lá fora, além dos muros que cercam a cidade. Por conta disso, a cada ano, muitos partem. E não se dão conta do óbvio: partir de Marianna, por causa da própria natureza da cidade, significa voltar a ela.

FOME

OS CARAS ESTÃO LÁ FORA há três semanas. Eles se revezam, mas isso dá no mesmo: tanto faz se são gordos hoje e magros amanhã. O que importa mesmo é a atitude – e a atitude, esta sim, não muda.

— Pra dentro! — foi o que eles falaram quando tentamos sair. Não protestamos, não queríamos confusão. Voltamos pra casa e ligamos a TV. Ajudaria a passar o tempo.

Uma, duas semanas, três. A TV já não tem mais graça – nada mais tem graça, aliás. Minha mulher, percebo agora, é insuportável. Também eu devo parecer insuportável a ela. Mas somos tolerantes, fomos educados pra isso. Tolerância, porém, é um exercício desgastante quando se sente fome. Agora, neste exato momento em que escrevo, sei que eles ainda estão lá fora, que continuarão lá fora, e sei também que toda a comida da casa já se acabou. Não demorará muito para essa nossa tolerância educada se transformar em simples e primitivo apetite. Eu conheço a fúria da minha mulher quando faminta: ela é capaz de qualquer coisa – qualquer coisa mesmo! Por isso já escondi as facas. E trago comigo, em segredo, um velho canivete que pertenceu ao meu pai. O amor é lindo, dizem, mas nunca se sabe.

A RELATIVIDADE DAS LÁGRIMAS

ELA JÁ DESPERTA com o rosto banhado em lágrimas. Desolada, a família lamenta:

— Ó, minha filha — diz a mãe.

— Ó, minha filha — diz o pai.

— Ó, minha irmã — dizem os irmãos.

Os tios, avós, et cetera também se desesperam com o desespero da menina, também se lamentam:

— Ó, minha menina — dizem.

A menina, no entanto, pouco se ocupa dos lamentos da família. Tem seus próprios interesses – e por isso chora. Antes de mais nada, agrada-lhe profundamente o sabor das lágrimas, o tempero balanceado do sal que lhe escorre pelo rosto. Ela é, sem que ninguém suspeite, uma artista, uma alminha dotada de extremo senso poético. Que coisa mais linda amanhecer e anoitecer aos prantos!, pensa ela, que alegria inigualável é chorar! A sua família, contudo, pouco vai além das aparências: quem chora sofre, pensam, categóricos, os pais irmãos et cetera. À noite, no escondido dos seus lençóis, choram de verdade, preocupados, enquanto a menina descansa tranqüilamente para mais um dia de lágrimas.
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