22 de mar. de 2010

Clara

Por Paulo Siqueira
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Encarou-a pela última vez — ela se espantou de tanto amor. O punhal caído a seus pés, deu-lhe as costas e sumiu na curva da pitangueira. O Primo - Dalton Trevisan


Precisava pensar aquilo, sair do desconforto que a notícia causava, penetrar o veio do acontecido, ir puxando um a um os detalhes, trazer o tema a lume, apará-lo, revisá-lo, diluí-lo, quase; simplificar o inferno, a grosseria, querer algo mínimo, um corte da cena, sem os dias que passaram antes, sem os que passariam depois; sem os lugares da falação, a rudeza, a lágrima; um quadro do romance: a luz rala incidindo no corpo de Clara, ele descalçando os sapatos, deixando cair o pulôver no tapete, caminhando lento para o quarto, arrancando o cinto , a primeira fivelada; a seda do baby-doll partindo-se, os tapas; não ficar enumerando pormenores; no lodo achar a singeleza; o lábio de Clara silencioso, agora, tremendo; o gesto dele no outro dia: erguer a gaze à luz da manhã, afundá-la n’água morna, colocar no rosto dela, repetir esse gesto até que as faces estivessem cobertas, reaquecer a água e ir colocando outra camada, abaixar com as pontas dos dedos a pálpebras, conter o desejo imenso de dar ali um beijo, perdoá-la, perdoá-la, setecentas vezes.
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Paulo Siqueira nasceu em Caratinga-MG; aos quatro anos de idade chegou a Brasília, onde vive até hoje; é professor de Português e Literatura na rede pública de ensino. É autor de O Tao da Coisa, poesia (Casa da Anta Editora, 1995); Lâmina, contos (LGE Editora, 2004) e abecedário, poesia (LGE Editora, 2009).
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