Por Mauro Siqueira
--O que passa na cabeça de alguém com o cano de uma arma, ainda quente, entre os olhos?... Não perca tempo tentando adivinhar o que é, eu respondo: a porra de uma maneira de sair da situação, sem a necessidade de uma cirurgia em que o resultado não seja você mesmo babando pelos próximos vinte, trinta anos ou, então, como fertilizante orgânico de um campo santo clandestino!
--Eu tinha quarenta e sete segundos para encontrar essa maneira.
--Não fazia ideia de onde estava, sabia apenas que era próximo a alguma ferrovia, estava muito quente ali, o suor pingava da minha camisa, que colada ao corpo começava a incomodar tanto quanto aquela situação. E que situação... maldito Vicente! Entrei naquela graças a ele. Pelas frestas daquele amontoado de tábuas que Eles chamavam de galpão, eu podia ver a poeira em suspensão numa coloração avermelhada nadando na luz que entrava; o sangue de Vicente escorria para perto de mim e graças à tensão capilar ele subia vagarosamente pela minha calça de linho que um dia foi branca – aquele sangue ainda não era o meu. Ali mesmo nos cascalhos em que estava ajoelhado implorando a algum deus pela minha vida, Vicente, o maldito, jazia numa posição bizarra: de costas, a perna esquerda quebrada num ângulo estranho – pareciam duas pernas direitas. Os ossos das mãos foram esmagados com uma marreta. O rosto virado em minha direção – tinha os olhos miúdos vidrados em mim. E por fim, o estrago do tiro na boca que quase separou a cabeça do resto do corpo. Era grotesco, o homem de voz trovejante, mas de andar desengonçado, não era mais nada além de um monte de massa de nada; ainda assim parecia desengonçado.
--Eu já não tinha mais esperanças de sair dali andando com minhas próprias pernas... pensei no que minha vida era e do que nunca teria sido...
--"Abra la boca!", disse o maldito argentino – o filho da puta tinha de sê-lo.
--Abri-a debilmente, ele empurrou a arma por entre meus dentes amarelados de nicotina como se fosse um termômetro, meu corpo de alguma forma entendendo a metáfora, tremia para validar a cena. Seus dois amigos riam do fundo do galpão, um deles aumentou o volume de um rádio que sibilava alguma coisa ininteligível para mim... Deus, eu já podia ver os anjos chorando por mim e ainda teria de morrer ouvindo pagode dor-de-cotovelo!
--"Monteiro! Acabe logo com isto, estamos com fome", disse o cara do rádio com impaciência.
--Era o fim.
--Pude sentir o vibrar das molas e engrenagens do .38 quando o cão da arma foi puxado. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, eu não consegui fechar os olhos.
--Nem Monteiro. Não piscou ao apertar o gatilho...
--(Uma vez, num filme, duas personagens discutiam o que era um milagre. Um deles respondeu: "É quando Deus faz o impossível, possível.")
--Não houve disparo, simplesmente a arma "negou fogo", Monteiro ia examinar a mesma quando...
--Caiu levando as duas mãos ao rosto já cheio de sangue – por que nos momentos mais estranhos da nossa vida temos as ideias mais tolas e estúpidas? A primeira coisa que passou pela minha cabeça ao vê-lo no chão foi: “Defeito de fábrica, o fabricante promoveu um ‘recall’, Monteiro não se deu ao trabalho de levar a arma”.
--O argentino desgraçado contorcia-se na terra vermelha e no cascalho de dor, eu ainda ajoelhado começava a entender que o tiro saíra pela culatra, quando vi o revólver. A três palmos do meu alcance a arma acenava para mim com a promessa de poder e vitória, os amigos do seu antigo dono eram mais lentos que lagartos pré-históricos e levaram uma vida para tomar alguma atitude. Duas ideias loucas atravessaram meu córtex cerebral: a primeira, faria como nos filmes e derrubaria os brutamontes com poderosos golpes de artes marciais que nem mesmo conhecia. Ou a segunda, convencer-ia-os a desistir – falaríamos de Buda, Jesus, Krishna, Gandhi, King, Bono, esses caras –, já que muitas pessoas haviam se machucado.
--O dilema nem corroeu meus sentimentos.
--Peguei a arma, levantei, virei-a em direção dos dois babacas, agora, lívidos e mansos. Não sabia se ainda podia funcionar, atirei rezando que não acontecesse o mesmo que aconteceu com o argentino – tinha de sê-lo!
--O tiro ecoou no galpão, acertei em cheio.
--O pequeno rádio de pilha se desfez em pedaços, em várias direções, em várias evoluções. Os dois não entenderam nada, nem mesmo eu entendia, então eu corri. Ouvia os zunidos, sentia a pólvora no ar e corria tudo o que não corri na adolescência, atravessei a porta do galpão ainda correndo, a claridade me cegou e por um momento não sabia o que era direita ou esquerda, corri em direção à ferrovia, podia ouvir os caras me perseguindo e eu corria – se não tivesse meu baço num acidente de infância, aquela dorzinha que dá nas costelas teria me feito parar e... bem, nada de história. Eu corria feito o diabo, eu ainda ouvia os tiros, corria como quenianos, não ousava olhar para trás, tinha medo de me tornar uma estátua de sal ou de nunca mais ver minha Eurídice... e então eu corri...
--até não mais ouvir os tiros.
--O que passa na cabeça de alguém com o cano de uma arma, ainda quente, entre os olhos?... Não perca tempo tentando adivinhar o que é, eu respondo: a porra de uma maneira de sair da situação, sem a necessidade de uma cirurgia em que o resultado não seja você mesmo babando pelos próximos vinte, trinta anos ou, então, como fertilizante orgânico de um campo santo clandestino!
--Eu tinha quarenta e sete segundos para encontrar essa maneira.
--Não fazia ideia de onde estava, sabia apenas que era próximo a alguma ferrovia, estava muito quente ali, o suor pingava da minha camisa, que colada ao corpo começava a incomodar tanto quanto aquela situação. E que situação... maldito Vicente! Entrei naquela graças a ele. Pelas frestas daquele amontoado de tábuas que Eles chamavam de galpão, eu podia ver a poeira em suspensão numa coloração avermelhada nadando na luz que entrava; o sangue de Vicente escorria para perto de mim e graças à tensão capilar ele subia vagarosamente pela minha calça de linho que um dia foi branca – aquele sangue ainda não era o meu. Ali mesmo nos cascalhos em que estava ajoelhado implorando a algum deus pela minha vida, Vicente, o maldito, jazia numa posição bizarra: de costas, a perna esquerda quebrada num ângulo estranho – pareciam duas pernas direitas. Os ossos das mãos foram esmagados com uma marreta. O rosto virado em minha direção – tinha os olhos miúdos vidrados em mim. E por fim, o estrago do tiro na boca que quase separou a cabeça do resto do corpo. Era grotesco, o homem de voz trovejante, mas de andar desengonçado, não era mais nada além de um monte de massa de nada; ainda assim parecia desengonçado.
--Eu já não tinha mais esperanças de sair dali andando com minhas próprias pernas... pensei no que minha vida era e do que nunca teria sido...
--"Abra la boca!", disse o maldito argentino – o filho da puta tinha de sê-lo.
--Abri-a debilmente, ele empurrou a arma por entre meus dentes amarelados de nicotina como se fosse um termômetro, meu corpo de alguma forma entendendo a metáfora, tremia para validar a cena. Seus dois amigos riam do fundo do galpão, um deles aumentou o volume de um rádio que sibilava alguma coisa ininteligível para mim... Deus, eu já podia ver os anjos chorando por mim e ainda teria de morrer ouvindo pagode dor-de-cotovelo!
--"Monteiro! Acabe logo com isto, estamos com fome", disse o cara do rádio com impaciência.
--Era o fim.
--Pude sentir o vibrar das molas e engrenagens do .38 quando o cão da arma foi puxado. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, eu não consegui fechar os olhos.
--Nem Monteiro. Não piscou ao apertar o gatilho...
--(Uma vez, num filme, duas personagens discutiam o que era um milagre. Um deles respondeu: "É quando Deus faz o impossível, possível.")
--Não houve disparo, simplesmente a arma "negou fogo", Monteiro ia examinar a mesma quando...
--Caiu levando as duas mãos ao rosto já cheio de sangue – por que nos momentos mais estranhos da nossa vida temos as ideias mais tolas e estúpidas? A primeira coisa que passou pela minha cabeça ao vê-lo no chão foi: “Defeito de fábrica, o fabricante promoveu um ‘recall’, Monteiro não se deu ao trabalho de levar a arma”.
--O argentino desgraçado contorcia-se na terra vermelha e no cascalho de dor, eu ainda ajoelhado começava a entender que o tiro saíra pela culatra, quando vi o revólver. A três palmos do meu alcance a arma acenava para mim com a promessa de poder e vitória, os amigos do seu antigo dono eram mais lentos que lagartos pré-históricos e levaram uma vida para tomar alguma atitude. Duas ideias loucas atravessaram meu córtex cerebral: a primeira, faria como nos filmes e derrubaria os brutamontes com poderosos golpes de artes marciais que nem mesmo conhecia. Ou a segunda, convencer-ia-os a desistir – falaríamos de Buda, Jesus, Krishna, Gandhi, King, Bono, esses caras –, já que muitas pessoas haviam se machucado.
--O dilema nem corroeu meus sentimentos.
--Peguei a arma, levantei, virei-a em direção dos dois babacas, agora, lívidos e mansos. Não sabia se ainda podia funcionar, atirei rezando que não acontecesse o mesmo que aconteceu com o argentino – tinha de sê-lo!
--O tiro ecoou no galpão, acertei em cheio.
--O pequeno rádio de pilha se desfez em pedaços, em várias direções, em várias evoluções. Os dois não entenderam nada, nem mesmo eu entendia, então eu corri. Ouvia os zunidos, sentia a pólvora no ar e corria tudo o que não corri na adolescência, atravessei a porta do galpão ainda correndo, a claridade me cegou e por um momento não sabia o que era direita ou esquerda, corri em direção à ferrovia, podia ouvir os caras me perseguindo e eu corria – se não tivesse meu baço num acidente de infância, aquela dorzinha que dá nas costelas teria me feito parar e... bem, nada de história. Eu corria feito o diabo, eu ainda ouvia os tiros, corria como quenianos, não ousava olhar para trás, tinha medo de me tornar uma estátua de sal ou de nunca mais ver minha Eurídice... e então eu corri...
--até não mais ouvir os tiros.
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