5 de mai. de 2023

Sonata de Simone

 


Por Krishnamurti Góes dos Anjos

“Os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui”... Fera ferida... “bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz”... No bar, tablado de mesas e cadeiras. Uma cerveja. Solidão incrustada faz-lhe companhia a cada segundo. Alguém chumbadamente acompanhada, o observa numa deselegância discreta de olhar. Dois copos solidários na mesa de lá. Na outra copo suado solitário. Olhares tangenciando-se novamente. Ninguém atende, ninguém chama, deixá-la em paz é o melhor. Esquece, voltando a olhar só mais uma vez... mas tá com um cara caraio! Imagina e desatina descrente da correspondente. Uma aventureira. Intenções vandálicas aventadas. Também não sabe se é. Geraldo Azevedo na caixa de som insiste que o olhar brilha qual estrela matutina... Isto parece o quê meu Deus? Esta mulher tá a fim de me sacanear é? Ou a gente quer se encontrar? Se ao menos pudesse ouvir o coração... O coração – na letra da música -, é triste como um camelo, frágil que nem brinquedo. Olhares insistem no triângulo amoroso etílico. 3 copos depois, entremeados de olhares, oceanicamente e calculadamente, ela levanta-se e vai até ele. Um amofinamento, desejo de correr, não parar, não pensar. Colado na cadeira. Você tem uma caneta? Lápis. Serve. Anota algo em um guardanapo. Como se chama? Simone. Escritor? Desesperadamente eu sei... transo teatro. Pára de escrever. O olhar dela estuda-o, ele devora-a. A música aliciando... “você me tem fácil de mais”... trocam palavras e ela vai tecendo outra música. Ele tentando uma Letra. Pernas lindas. Um pedaço de qualquer lugar, cheiro feminino, cheiro  de mulher. Se você vier comigo... já vai? Cedo! Fugaz. Já não posso estou com um amigo. Te prometo a lua, se for lua cheia. E se for minguante? À míngua? Sim. Será sua. Mesmo? Verdade. Me ligue. Tchau. Um beijo com cheiro de botão de laranjeira excita o desejo do encontro da sede com a laranja. Se esvai deixando-o emprenhado de promessas de olhar e o guardanapo com os números do telefone.

Mais tarde, a frieza da voz metálica computadorizada da companhia telefônica informa laconicamente. Número inexistente. 

Número i-ne-xis-ten-te...e...não...tem...ma...is..na...da...negro...amor.

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado, À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.