Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Parece
ter sido o crítico Afrânio Peixoto, o primeiro a difundir o haikai na
Literatura Brasileira. Em seu livro de 1919, chamado Trovas Populares
Brasileiras, faz referências ao poema japonês. O gênero poético tem
estruturação formal simples. Possui três versos: o primeiro e o terceiro são
redondilhas menores — versos de cinco sílabas —, e o segundo, redondilha maior
— verso de sete sílabas. Portanto, é uma poesia objetiva e sintética. Entre nós
encontrou admiradores e seguidores do porte de Paulo Leminski, Millôr Fernandes
e Guilherme de Almeida. No Japão sempre foi muito praticado, ao menos desde o
século XVII pelo poeta Bashô, pseudônimo de Matsuo Munefusa. Foi Bashô quem deu
força e importância a prática do haikai em seu país.
Uma
feliz injunção de circunstâncias levou a advogada, escritora e tradutora Cássia
Penteado a escrever Haikai, recentemente publicado pela Editora
Reformatório que, em face do sucesso alcançado no lançamento, reimprime nova
tiragem da edição. A feliz injunção de circunstâncias que envolvem a concepção
do romance (sim, é um romance em prosa poética), começaram a se configurar
ainda na infância da autora devido à convivência com objetos de origem japonesa
que sua família colecionava. Seguiu vida a fora, com o desfrute da culinária
japonesa, amizades cultivadas com nipônicos, imigrantes que foram em larga
escala para São Paulo e curiosamente, em virtude de pesquisas relacionadas ao
cultivo de cogumelos daquele país. Tudo isto acabou estimulando pesquisas
outras, que levaram a novas descobertas sobre a fascinante cultura do povo do
sol nascente. Plantou-se a semente que deu origem à ficção. Mais 3 anos de
leituras intensas, pesquisas e entrevistas sobre a cultura japonesa. Temos o
romance Haikai.
A
obra divide-se em quatro partes: Primavera, Verão, Outono e Inverno. E o leitor
ao tempo em que se deleita com a trama da narrativa, vai também conhecendo
várias nuances da cultura japonesa, como o cultivo de cogumelos, a alta
gastronomia que os japoneses adotam, e a fabulosa fabricação de cerâmicas
decoradas que aquele povo produz como uma de suas maiores especialidades
artísticas. A construção da obra em
breves capítulos, imprimiu ao projeto gráfico da obra roupagem que valoriza
espaços, assim como a introdução de belíssimas ilustrações. Outra surpresa para
o leitor. Houve um garimpo de Haicais da autoria de Bashô que ora abrem os
capítulos como epígrafes, ora aparecem como conclusão parcial, o que permite
reflexão paralela ao texto propriamente dito. Tudo muito bem urdido a dar a
consistência ficcional para a narrativa.
O
enredo, narrado pela jovem poeta Chiara, nos conta que ela mesma, necessitando
um contato mais próximo com a natureza a fim de sentir-se em um estado de
espírito tal que lhe propiciasse melhores condições para compor sua desejada
obra, acaba indo residir na fazenda de cultivo de cogumelos do senhor Murakami,
marido de Sayuri com quem teve um filho ainda pequeno. Sayuri está internada em
um hospital, vítima de grave e misteriosa doença. Entre o convívio diário de
Chiara com aquela diminuta família de pai e filho pequeno, vamos sabendo da
história de vida de Sayuri, uma jovem nascida em Kyoto, ceramista de largo
talento, e despachada para o Brasil, aos 21 anos de idade, em virtude de um
casamento arranjado com o senhor Murakami – e imagine-se que uma coisa dessas
ocorre em pleno ano de 1997!
Ocorre
que entre um e outro capítulo se alternam as vivências de Chiara na fazenda,
com as visitas à mãe do garotinho Dô no hospital, Chiara vai descortinando a
trajetória de vida de Sayuri, que esconde terrível segredo, ao tempo em que
outra história se constrói. Assim a vida, um eterno recompor. Telma Shiraishi,
que assina o texto de orelhas, faz a determinada altura, referência a um
conceito espacial muito usado na cultura japonesa. O “ma”. O vazio místico do
ideal japonês teria, mais ainda do que revelações explícitas, o condão de
sugerir todo um universo de possibilidades, promessas, desejos e significados.
Isto porque também, e leve-se em conta, que se está plenamente consciente de que
nada é em vão, por acaso ou por descuido na existência. Este o universo em que
nos movimentamos. “Ma” seria um lugar vazio onde todos os tipos de fenómenos
aparecem, passam e desaparecem, onde vários símbolos de arranjo de fenómenos e
formas altamente elásticas surgem, e só começa a fazer sentido quando existe
indicações da vida humana. Está a chave talvez para se observar e refletir
sobre o âmago da criação de Cássia Penteado. Vale a pena refletir muito
detidamente sobre. Difícil, sobretudo se nos dermos conta de que somos uma
negatividade completa (aqui no ocidente nem se fala), em termos de especulações
imaginativas.
Na
cultura japonesa, a produção de cogumelos traz em si uma modulação, uma
gradação de simplicidade elegante dentro do silêncio eloquente que envolve o
desenvolvimento desses fungos comestíveis. Valoriza-se o que os nipônicos
entendem como Shibumi – ou seja, o grande requinte oculto sob uma aparência
corriqueira. A expressão é usada para qualificar qualquer coisa que exprima
harmonia, beleza fluída e a paz que está em movimento sem perturbar-se.
Observamos que esses organismos extraordinários que são os cogumelos, possuem
enorme capacidade de adaptação e de colonização dos mais diversos meios (águas
doces e salgadas, terra, madeira, etc.). As árvores lhes fornecem alimento,
abrigo e até mesmo suporte físico. Por seu turno, esses seres vivos desempenham
ações específicas na dinâmica própria da comunidade biológica, que é a floresta
natural. E então refletimos que realmente, para além da mera utilidade
comestível para os humanos, os cogumelos detêm função crucial no ciclo
biológico da Terra. Juntamente com as bactérias, são os únicos seres vivos
existentes capazes de digerir duas das substâncias presentes numa árvore –
lenhina e celulose – realizando a decomposição da matéria orgânica. Através
desta decomposição, os fungos interveem nos processos de mineralização e
reciclagem dos nutrientes no ciclo do carbono, e na associação simbiótica que
alguns estabelecem com o sistema radicular das árvores. Em suma, promovem a
reciclagem de nutrientes que já fizeram parte de outros seres vivos. Sem a sua
ajuda, o solo cobrir-se-ia de inúmeros restos de animais e vegetais, tornando a
vida inviável. Os japoneses sabem disso.
O
homem ocidental, escravo do tal pensamento “racional”, detonou os liames de
causa e efeito e meteu tudo no cesto das casualidades, ou acidentes ou
imprevistos. Perdeu a capacidade de concatenar evidências. O mérito inconteste
de um livro como é Haikai é, para além do deslumbre muito justificável
com a cultura japonesa, o de acenar mais uma vez para a ideia de que tudo,
absolutamente tudo no planeta tem sua utilidade, tudo se interliga e se conecta
para que a vida sempre seja viável. Vivemos em um imenso rizoma que nos
possibilita em última análise a vida. E esta vida em todos os níveis, submete a
matéria e a coloca em permanente transformação. Para a humanidade, o que sempre
permanecerá, o que sobreviverá à renovação contínua dos meios, é o
desenvolvimento da nossa personalidade espiritual.
A
propósito do romance EntreMeios, obra de 2018, quando da estreia da
autora na literatura, escrevi: “A senhora Cássia Penteado positivamente elabora
uma prosa ágil, concisa e inteligente na qual entrelaça fios de um psicologismo
plasmado na compreensão das obscuridades que habitam a alma humana.
Verdadeiramente uma estreia promissora que há de provocar nos leitores o desejo
de encontrar novas produções suas.” Eis aqui em 2022 este romance Haikai.
Texto em prosa poética que alcança em boa medida, semelhanças com a linha
estrutural do gênero poético japonês, a valorizar o simples, e cujo objetivo é
aguçar em quem lê, o espírito contemplativo e descritivo das imagens expressas.
Fragmentos da realidade que se interconectam, buscando captar, como numa fotografia,
a brevidade de momentos de que a vida é feita. Pequenos registros de uma
percepção muito mais intensa a respeito da existência e da transitoriedade da
própria vida física.
Para
comprar o livro Haikai, que conta com belas ilustrações da artista plástica
Mika Takahashi, acesse:
https://editorareformatorio.minhalojanouol.com.br/produto/321227/haikai
https://www.facebook.com/cassia.penteado
Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com
Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado, À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.