AUTORRETRATO I
Eu
não sou somente
este
rosto jovem
sou
também
este
corpo magro
estes
pulmões doentes
este
ser descrente.
Eu
não sou somente
estas
cicatrizes
na
testa braço e perna
sou
também
e
principalmente
a
lembrança delas.
Eu
não sou somente
este
sorriso
e
estes olhos míopes
minha
gente
sou
também
humano
e tenho
(como
vocês)
cáries
nos dentes.
Eu
não sou somente
este
sexo masculino
sou
também
os
momentos de carinho
e a
ausência deles
quando
se utiliza
o
recurso das mãos
e da
mente.
Eu
não sou somente
o que
como e o que bebo
sou
também
o que
excreto no banheiro.
Eu
não sou somente
um
amontoado de órgãos
sou
também
a
função de cada um deles
isoladamente.
Eu
não sou somente
as
palavras e os atos
sou
também
(e
antes)
os
gestos que os/as
determinaram.
Eu não
sou somente
o
caminhar e o seu contrário
sou
também
o
percurso no escuro.
Eu
não sou somente
poeta
seus
estetas
sou
também
funcionário
público.
AUTORRETRATO II
Eu sou aquele
que teve que vender
a alma ao diabo
para se ver publicado.
Eu sou aquele
que teve que vomitar
o próprio sangue
para se fazer aceitável.
Eu sou aquele
que teve que buscar
entre os malditos
um convívio possível.
Eu sou aquele
que teve que sufocar
o hálito rebelde
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que invocar
o sarcasmo irônico
para se vingar dos homens.
Eu sou aquele
que se vestiu de palhaço
e depois do espetáculo
matou toda a platéia.
Eu sou aquele
que amou sozinho
a impossibilidade
do amor compartilhado.
Eu sou aquele
que engoliu todos os sapos
e os digeriu com álcool.
Eu sou aquele
Fausto egocêntrico de Goethe
que mesmo vendendo a alma ao sucesso
ainda assim morreu inédito.
Do livro O acaso das manhãs.
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.