Por Carla Dias
Toca a brasa com a ponta dos dedos. Fricciona-o até sentir o cheiro de carne queimada se misturar aos perfumes dos convidados. Insiste no toque sem que a dor lhe impeça. Lembra-se de que há dor que previne de se sentir assim, presente, em todo o resto. Ao seu redor, a comemoração continua. Ninguém percebe seu atrevimento. A vida continua nos outros departamentos da realidade, porque é dela continuar sem se ater aos acontecimentos exclusivos de cada um. Pensa em como é tentar ser o um em espaço e tempo limitados por medo e insegurança e seus músculos se contraem. Engole um grito, que tem sido hospedeiro de seus desesperos inqualificáveis, enquanto a pessoa ao seu lado abocanha um vol-au-vent de cogumelo e queijo brie. A música lhe distrai por alguns segundos e depois a dor lhe arranca do devaneio. Afunda um pouco mais o dedo na brasa, e uma eletricidade desconhecida lhe percorre o corpo. Onde mora o estar presente que sempre lhe soou como diagnóstico? Presente por quê? Para quem? Em que tipo de quando? A educação recebida teve como base o preservar-se que se avizinha da indiferença; não quer mais essa ausência. Um dos garçons se escandaliza com o que, de pronto, define como acidente, puxando-lhe a mão da churrasqueira. Kit de primeiros-socorros, desculpas aplicadas pelos convidados que frequentam sua biografia de cerimônias e admiração ensaiada. Sorri e ninguém entende um sorriso escapando da dor. Sorri e diz, o olhar serenado e a determinação de escancarar uma verdade por vez, que detesta vol-au-vent de cogumelo e queijo brie.
Carla Dias é paulista de Santo André. Escritora, baterista e produtora cultural, autora dos livros Os estranhos (romance – sic, 2009), Estopim (romance – sic 2012), O observador (contos – Penalux, 2016), Livro das confissões (poesia – Patuá, 2018), Baseado em palavras não ditas (romance – Edição do Autor, 2019), Fugas, pausas e desatinos (Laranja Original, 2022) entre outros. É cronista do Crônica do Dia desde 1998, ano de lançamento. Baterista da banda OsQuatro, vem trabalhando um repertório autoral com poemas de sua autoria musicados.