3 de mar. de 2023

Certo dia

 


Por Krishnamurti Góes dos Anjos

Apresso o passo para não encontrar a delicatéssen Sabores de vida lotada. É quase a hora em que os pães saem do forno quentinhos e então se forma uma longa fila para pesagem e pagamento. Em vão... escolho os sabores habituais e entro na famigerada fila. De onde me coube esperar, lanço um olhar desconsolado para o pequeno salão que há na entrada da padaria  nome que tinham as delicatéssen num passado recente , e observo algumas mesinhas de madeira onde se sentam aqueles que resolvem tomar seus cafés acompanhados das iguarias que ali também são servidas.

Vagueio o olhar de um lado a outro, até que detenho-me em uma mesa onde está sentado, de frente para a fila, um senhor idoso. Apuro o olhar sobre aquele homem de cabelos completamente grisalhos, óculos de grau, bem barbeado, e meu coração acelera no exato momento em que nossos olhos se encontram. Conheço-o. Sei que é um sujeito de olhar treinado na observação da vida que o cerca. Percebeu o meu olhar fixo, todavia não deu sinais de reconhecimento. Ficamos nesta observação mútua, segundos suficientes para que ele, cordial como é, faça um leve gesto de cumprimento, um “boa noite” silencioso a julgar pela expressão facial. Desvia o olhar para outra direção. Começo a suar frio, terá me reconhecido? Creio que não... também desvio o olhar por instantes, para logo em seguida, furtivamente, voltar a examiná-lo. Parece-me um tanto abatido, o rosto transparece certa palidez. Ah, a idade impõe inexoravelmente o seu preço... Que esperar? A última vez que nos encontramos foi há quase quinze anos... natural que não tivesse me reconhecido, o tempo alterou-lhe um pouco as feições, mudara as minhas também. Envelhecemos.

 A mocinha do caixa fala numa voz apressada:

 Próximo!

 A fila anda e eu me pergunto se o dinheiro que trago no bolso é suficiente para  pagar o “pão do corpo”, enquanto o espírito devaneia imerso em memórias...

***

Rio de Janeiro. Corre o ano de 1953. Um jovem de vinte e cinco anos esgueira-se entre prateleiras de livros em uma livraria, certo de ali encontrar um escritor de quem era fã, e a quem reputava como a divindade da prosa de ficção. Viajara milhares de quilômetros para isto. Conhecer aquele autor que ele lera, com quem se encantara, que decorara até certos trechos de suas obras. Buscava simplesmente ter a oportunidade de trocar umas palavras com seu ídolo, balbuciar sua admiração. Sabia que o autor era frequentador assíduo do local onde sentava-se, vez por outra, para leitura de novas obras. Debalde. O homem não estava ali. A resposta que obtivera de um funcionário foi das mais decepcionantes que um admirador pode obter. Doente. Muito doente. A beira da morte...

 Próximo! – volta a instar em meio ao burburinho de vozes, a mocinha do caixa. A fila anda, aproximo-me mais daquele senhor. Volto a observá-lo e vejo que está tomado de um ar absorto, parece ter o pensamento longe, alheio aos alaridos do mundo. Sinto-me ansioso, ao mesmo tempo em que desejo falar-lhe, apertar-lhe a mão, tenho vagos receios. E se fizer de conta que ele não está ali? Já não o cumprimentei mesmo que de longe? A maldita timidez me toma...

***

Janeiro do ano 2000. Embarco em um ônibus na rodoviária resolvido a encarar uma viagem de quinhentos quilômetros noite adentro. Levo nas mãos somente um envelope com os originais de um livro que acabara de escrever e que tencionava expor a certo escritor experiente. Saber de suas impressões de leitura, ainda que fossem negativas. Um amigo comum garantira promover nosso encontro. “Se irá ler, dizer algo? Bom, aí já não garanto”, disse-me. “Nosso amigo é um sujeito cortês, generoso. Recebe-o, isso posso assegurar”.  Encarei os quinhentos quilômetros na poltrona desconfortável do ônibus.

***

– Próximo! Próximo! Próximooo! E a fila emperra porque uma madame, dessas que acham que o mundo gira ao seu redor, implica com a atendente, não se afasta do caixa, e a menina por sua vez, anseia em atender novo cliente e livrar-se da inconveniente. Atenções se voltam para a cena. O senhor idoso também sai de sua introspecção, observa, e balança a cabeça, esboçando um discreto sorriso nos lábios.  O mesmo sorriso com que há quinze anos me recebera.

Na ocasião, depois de ouvir um breve histórico sobre a minha incipiente literatura feito por nosso amigo comum, sorriu e perguntou admirado:

 Quer dizer então que você viajou toda essa distância para vir ter comigo?

Balancei a cabeça afirmativamente e gaguejando despejei em cima do homem que sim, que só pedia que desse uma lida nos originais, que me dissesse algo, qualquer coisa, não tinha pressa, eu esperaria o tempo que fosse preciso... e continuaria gaguejando não fosse o socorro de nosso amigo que ao me ver naquele vexame, meteu no meio dessa enxurrada verbal, lá um outro assunto ligado à literatura. A conversa virou para outra direção, puseram-se os dois a prosear. Calei-me aliviado. Sentáramos à uma mesa pequena, à beira de uma piscina na residência do escritor. Por baixo da mesa minha perna direita balançava nervosamente. Vontade de ir-me embora dali. Decorreram inesgotáveis dez, quinze minutos de planos para feiras literárias, lançamentos de livros, autores e obras, de modo que o escritor durante aquele tempo se dirigiu mais diretamente a mim, apenas duas vezes. A primeira quando, no contexto da conversa que entretinha, lembrou o dito de Aníbal Machado: “Se  todo teu corpo não participa do que escreves, guarda o papel e deixa para amanhã”. A segunda, para voltar a perguntar:

 Viajastes toda a noite então meu rapaz, não está cansado? ... É verdade. Que coisa… E calou-se pensativo alisando com a mão o envelope que estava sobre a mesa, enquanto ouvia o que nosso amigo ia dizendo...

***

O próximo da fila sou eu. A moça pesa o pão e diz-me o valor. Pago-o e dirijo-me à saída. O escritor percebe a minha aproximação, sorri. Assalta-me a dúvida cruel. Paro ou não paro? Parei e cumprimentei-o:

 Olá tudo bem? – Embora se mostrasse um tanto quanto desconfiado e meio arredio, respondeu amigavelmente.

 Boa noite. Como vai?

 Bem. Vejo que esperas algo. Há preferência na fila para as pessoas...    procuro uma palavra amena...

 Para idosos? Sim, eu sei, mas é que aguardo minha esposa. Viemos tomar um mingau de tapioca que aqui servem. Delicioso. Ali está ela já quase a pagar a conta...

 Sim, então não demora...  retruquei obtendo a certeza de que ele não me reconhecera. Tornei. – E a literatura? Como anda?

Seu rosto iluminou-se. Olhou-me fazendo visível esforço para situar-se quanto a identidade de seu interlocutor.

 Ah... a literatura... sempre muito difícil, uma luta tremenda  sorriu –, mas você sabe; a gente faz literatura para não ficar maluco, para não pirar.

 É verdade  animei-me com a recepção, e perguntei: - O senhor sabe quem sou eu?  - franziu a testa e mirou-me o rosto com curiosidade, para afinal responder:

 Não... desculpe-me, sou péssimo fisionomista...  Disse-lhe meu nome. Sua fisionomia alegrou-se.

 Ah, sim, porque não falou logo? Sim, você esteve comigo e aquele nosso amigo... mas já faz muito tempo, não? Sim. Como não? Recordo-me, enfrentou um estirão de estrada… Sim, que cabeça a minha, desculpe. Mas me diga, tens escrito?

 Sim. – e contei-lhe em breves palavras o que andava maquinando em matéria literária.

 Que bom, notícias alvissareiras. Ah! Afinal, ai vem vindo a janta! Não quer sentar-se conosco?

 Não, tenho que ir, desejo-lhes bom apetite. Prazer em revê-lo.

 Pela mesma forma. Bem, até mais. – disse ao tempo em que estendeu-me a sua mão direita.

 Até mais mestre. Respondi premindo-lhe de leve a mão, e me afastei. Fui andando sem olhar para trás, fui andando com um nó na garganta, porque a linguagem do pressentimento soprara-me que não nos veríamos mais...

Tanto que queria dizer-lhe, contar que lera nesses quinze anos, boa parte de sua obra publicada, tanto a comentar sobre situações e personagens que ele criara... aquele encontro avivou-me sulcos na memória. Realidade e ficção se misturaram... teria ele naquele nosso primeiro encontro, se recordado da viagem frustrada que fizera tantos anos antes? A minha expedição fora mais feliz, rendeu um incentivo sob a forma de prefácio que ele escreveu... continuei andando por ruas mal iluminadas dirigindo-lhe mentalmente o sussurro de uma palavra magra porque insuficiente. Gratidão.

Gratidão e admiração maior ainda, pois aquele jovem de vinte e cinco anos que um dia ele fora, atirou-se às águas revoltas da literatura, mesmo sem o incentivo que não me negara. Por décadas a fio, guiou-se pelo instinto do criador literário. Cresceu de corpo, individualmente, por dentro, na consciência. Tornou-se uma referência na literatura.

O tempo... o grande senhor dos destinos. Quanto ele nos ensina nas camadas de vivências que vai gravando sobre nossos espíritos? Naquele ano 2000 eu não sabia que em 1953, o escritor, objeto da minha admiração, empreendera viagem semelhante para encontrar um outro escritor a quem por sua vez apreciava. Naquela noite, caminhando pelas ruas, de volta para casa, estive meditando sobre esse tênue mistério de escritores que se buscam, que se visitam não somente por meio de suas obras, mas pessoalmente quando assim é possível. No curso circular do mundo o homem continua trilhando seu caminho na vida e na literatura. Como uma ampulheta que se escoa, se desvira e se escoa, e uma vez mais, e tantas outras vezes ainda, seguimos por gerações e gerações até que encontremos um saboroso tempo no qual aprendamos a ler o mundo e uns aos outros na inteira conexão de todas as coisas. Quando esta hora vier, emergirá como realidade, finalmente, o mais poderoso pensamento que nos tem feito caminhar. O pensamento da eternidade.

***

Poucas semanas depois daquele encontro com o velho escritor, em uma manhã de sol forte, chega-me o triste comunicado de sua morte. Consterno-me, reflito um momento, e fecho o note book que me trouxe a notícia. Lanço mão de papel e lapiseira e começo a escrever um conto. Ponho-lhe o título: CERTO DIA... EM UMA FILA.


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.