22 de nov. de 2021

Perdido num labirinto de mim mesmo

Por Milton Rezende

 

A visita


De súbito a chuva cessou.
Ponho-me a escrever sobre ti,
criatura sem carne
que me visita.
 
Não sei de onde vens,
mas sempre chegas
nas horas mais extenuantes
de minha fuga.
 
Fecho portas e janelas
para não te permitir
livre acesso sobre mim,
que de cansado me basto.
 
Mas tu me vens sem ser chamada
e mesmo sem chegar em forma clara,
sei que és minha consciência,
e te incorporo.

 

Considerações a respeito do homem

(Drummond revisitado)

Os homens
não sabem que são homens
se soubessem, rejeitariam o nome.
 
O homem
desconhece o outro homem
que vive dentro ou fora dele
e que nunca foi visto.
 
O homem
e o absurdo de ser homem.
 
O homem
não tem consciência
do que viria a ser o homem
em sua acepção genérica.
 
O homem
é o estereótipo do homem.
 
O homem
é específico como o bicho
pior que isso, é dual
é indivíduo e social.
 
O homem
não suporta o peso de ser homem.
 
O homem
não tem importância alguma
para o próprio homem.
 
O homem
e o desespero de ser homem
não sendo, na ilusão de ser.
 
Os homens
quando reunidos em sociedade
não formam um todo, sequer uma parte.
Formam apenas uma irmandade
a caminho do nada.
 
Um homem
não destruirá um outro homem.
A arte, tenho esperança, 
humanizará o homem.

  

Duplicidade


Quando nasci
nascia comigo
o oposto de mim.
Assim tenho dois nomes
que simbolicamente constituem
dois inimigos entre si.
 
Para caracterizar dois polos
não é preciso enumerar os opostos
e nem as subdivisões ocorridas
através de concessões bilaterais
para se chegar a um entendimento.
 
O certo é que esse antagonismo
cristalizou-se no relacionamento,
aniquilando todas as tentativas
de integração entre as partes.
 
O diabo do outro sempre negou-me
contradisse-me em público
desmentiu minhas verdades
impediu-me as atitudes
e por fim desmanchou meu casamento.
 
Aí então fiquei louco
e fui recolhido num hospício
onde me perdi eu mesmo num labirinto
de mentiras e desvairismo,
até que me matei.
 
E não é que o outro foi ao enterro,
carregou meu caixão e se riu de mim?
Mas depois ele também morreu
e ainda hoje estamos em conflito aberto.
 
Coisa que, se não traz as vantagens
do perdão pela unidade aparente,
pelo menos impede nosso julgamento
e nos livra do fogo interno/eterno 
concedido aos que se pretendem coerentes.


Do livro O Acaso das Manhãs (Edicon, 1986). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.