17 de nov. de 2021

A literatura de ficção científica dentro das salas de aula

Por Sinvaldo Júnior


Antes de discorrer sobre a questão proposta no título, cabem algumas reflexões: o que é ficção científica (fc)? Quais as características de um conto, uma novela ou um romance de fc? Em que pé está a literatura de fc no Brasil? Sendo assim, comecemos pelo comecinho... 

Caracterizar a ficção científica parece fácil (e realmente é), porque em geral apenas dois atributos são essenciais para que uma obra seja considerada do gênero: 1) projete para o futuro a história contada; 2) possua como mote principal a evolução científica e tecnológica. 

Diferentemente das histórias de fantasia, cujos “absurdos” raramente aconteceriam ou acontecerão, na ficção científica a verossimilhança está relacionada à possibilidade de um fato vir a ocorrer, num futuro próximo ou distante. O “absurdo” (os elementos imaginários) da ficção científica não é tão absurdo como pode parecer, porque em geral ela parte da tecnologia existente (base científica e tecnológica) à época da feitura da obra para prever – ficcionalmente – um momento futuro. 

A verossimilhança (coerência interna da obra literária), assim, é de suma importância para os contos, novelas e romances de fc, e ela pode ser resultado: a) da (boa) utilização da base tecnológica existente à época; b) da utilização de conceitos científicos para a explicação da trama ou caracterização de ambientes e personagens; c) da criação de palavras e termos que se referem a objetos, pessoas, locais não existentes (na vida real); d) da discussão sobre a condição humana. 

Ah, tendo em vista os itens a e b, então eu preciso ser um cientista para escrever histórias de ficção científica? Não necessariamente. Maaaaas... Como a ciência e a tecnologia são essenciais para o desenvolvimento dessas histórias, o conhecimento acerca das discussões e conceitos científicos atuais é importantíssimo para um autor que se propõe a escrever fc. Ah, então é sobretudo em histórias de ficção científica que encontramos as principais discussões científicas? Obviamente que não. Encontramos, isso sim, nos artigos e pesquisas acadêmico-científicas, em geral oriundas de dissertações, teses, entre outras pesquisas de professores/pesquisadores de diversas áreas. E é aí que um escritor pode se “chafurdar”. 

Literatura é, sobretudo, imaginação, e não possui compromisso com a realidade factual. Sendo assim, elementos imaginários não só fazem parte, como também são a razão de histórias ficcionais existirem. Tomemos como exemplo A máquina do tempo, de H. G. Wells. Nesse romance de 1895 (século XIX, portanto) o personagem “viajante do tempo” desenvolve, com base em conceitos matemáticos, uma máquina capaz de se mover pela dimensão do tempo. Possui relação com a realidade e descobertas da época e de épocas anteriores à publicação da obra? Obviamente. Mas o que prevalece? A imaginação. Tanto é que, até hoje, em pleno século XXI, mais de 120 anos depois, ainda não fomos capazes de criar uma máquina capaz de viajar no tempo. 

Tomemos agora, como exemplo, O homem bicentenário, de Isaac Asimov. Trata-se de uma novela e, portanto, de um texto literário. Esse é o primeiro ponto a ser destacado. Não é um texto (essencialmente) opinativo, nem um texto científico (elementos imaginários não cabem em artigos científicos, que fique claríssimo ao aluno). Não é uma obra audiovisual. É uma obra criada a partir (tão somente) das palavras, que por sua vez criam uma história imaginária em que tudo pode, desde que verossímil, conceito discutido nos primeiros parágrafos.


Dentro do âmbito da ficção, é possível um robô, criado pelos seres humanos, reivindicar sua condição humana perante a humanidade. Dentro do âmbito da ficção, é possível um robô se comportar e sentir como um ser humano. Dentro do âmbito da ficção (por enquanto, só na ficção), é possível um robô decidir realizar um transplante de cérebro com a intenção de se tornar humano, o que resultou em sua mortalidade:

 

“O meu próprio comportamento positrônico já durou quase dois séculos sem nenhuma modificação perceptível e é capaz de durar muito mais ainda. Não é essa a objeção fundamental? A humanidade pode tolerar um robô imortal, porque pouco importa quanto tempo a máquina dure, mas não pode tolerar um homem imortal, uma vez que a própria mortalidade só é sustentável na medida em que for geral. E por esse motivo não concordam com minha exigência de me tornar humano” (ASIMOV, 1997, p. 81). 

Mais que questões científicas e/ou tecnológicas, O homem bicentenário, de Isaac Asimov, trata de questões humanas, demasiadamente humanas. Discute questões filosóficas. Suscita reflexões. Uma obra sobre a consciência de robôs, em um mundo com humanos nem sempre conscientes de seus atos, discute não somente a relação entre máquinas e seres humanos, mas escancara – em suas entrelinhas – a mesquinhez, a hipocrisia, a cegueira da humanidade. A boa obra de fc faz isso. 

Toda literatura é uma extrapolação da realidade, pois nenhum texto literário é uma representação exata do real. Nem a ficção realista-naturalista, que se propõe a descrever em detalhes as pessoas, o espaço, o comportamento, os hábitos, a cultura, o linguajar da sociedade, por exemplo, pode ser considerada uma representação. 

A ficção científica, por sua vez, é uma extrapolação inclusive temporal (foco no futuro), espacial (foco em espaços imaginários) e, às vezes, extrapolação moral da realidade, porque cria um mundo tão diferente que nem sempre o mundo real e atual cabe nele. É um exercício profundo de imaginação. E a imaginação pode levar a mundos perturbadores... 

Enfim, vamos à última questão: em que pé está a literatura de ficção científica no Brasil? Para discuti-la, vamos recorrer à apresentação da antologia Fractais tropicais (2018), organizada por Nelson de Oliveira, que reuniu 30 autores do “melhor da ficção científica brasileira”. Segundo ele, embora a história da fc brasileira tenha se iniciado com o romance O doutor Benignus, do português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Zaluar, em 1875, só a partir da década de 1960, com as Edições GRD, o gênero compôs sua Primeira Onda, ou seja, um grupo de escritores em número suficiente para ser notado e propagado. 

De lá para cá, muitas obras e autores surgiram, embora – até hoje – Nelson de Oliveira considera que a ficção científica seja – no Brasil – marginalizada:

 

Enquanto isso, apesar do número cada vez maior de ficcionistas talentosos e obras inquietantes, a ficção científica brasuca continua sofrendo da mais injusta e estúpida invisibilidade. Isso não significa que o leitor brasileiro não goste de ficção científica.

(...)

Significa apenas que o brasileiro − leitor, editor, crítico, professor acadêmico − prefere não prestigiar a produção brasuca de ficção científica, por acreditar que “se é coisa de brasileiro só pode ser ruim”. É o notório complexo de vira-lata, de que falava meu xará, Nelson Rodrigues. 


Entre os 30 selecionados para sua antologia, estão os autores Ademir Assunção, Lucio Manfredi, Jorge Luiz Calife, Roberto de Sousa Causo, Ataíde Tartari, Gerson Lodi-Ribeiro, André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Cirilo Lemos, Ronaldo Bressane, Fabio Fernandes, Octavio Aragão, Fausto Fawcett, Braulio Tavares, Luiz Bras, Tibor Moricz, Carlos Orsi, entre outros que compõem a atualíssima literatura brasileira de ficção científica, pela qual “temos de batalhar com mais paixão e persistência”, por estar ela “entre as melhores do mundo”, segundo o organizador da antologia. 

E é sobretudo por esse último motivo que acredito que a literatura de ficção científica (a brasileira, em especial) deve estar dentro das salas de aula das escolas públicas e particulares deste país. Não somente por isso, óbvio, mas também porque: 

    ·      Em geral, trata-se de uma literatura de fácil leitura, pois aqui a linguagem é um meio para contar uma história, e esta acaba sendo a protagonista do texto;

    ·      É uma literatura de fácil acesso: há muitas antologias recentes; há muitos sites e blogues, páginas e grupos de Facebook no ar; há vários autores (inclusive os participantes da Fractais tropicais) nas redes sociais;

    ·      Os séculos XX e XXI produziram muitas obras audiovisuais de ficção científica, o que torna o diálogo entre literatura e cinema, por exemplo, rico e fácil;

    ·      A ficção científica não é feita apenas por autores de ficção científica. Mas... como assim? Obras clássicas como Frankenstein (1818), de Mary Shelley, O médico e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, A máquina do tempo (1895), de H. G. Wells, Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, e autores como Jules Verne e George Orwell podem ser abordados dentro do conceito e discussões sobre a ficção científica;

    ·      Por projetar um futuro fincado na ciência e na tecnologia do presente, a fc propicia muitas discussões tanto sobre o presente quanto sobre um futuro possível, o que enriquece o trabalho do professor com os alunos. 

Assim, após a apresentação da obra e autor, leitura, interpretações e discussões, uma atividade possível é comparar obras literárias de ficção científica, escritas e publicadas séculos ou décadas atrás (aqui os clássicos citados são bem-vindos...), com a realidade presente, de maneira a identificar se as previsões feitas por essas obras e autores de fato se concretizaram. 

Fora do âmbito da obra literária, mas dentro do mundo da literatura, por exemplo, em 1964 o escritor Isaac Asimov publicou um artigo no The New York Times fazendo algumas previsões para 2014 (cinquenta anos depois, portanto), dentre as quais a de que as comunicações seriam audiovisuais e uma pessoa poderia não apenas escutar, mas também ver a pessoa com a qual conversa. Previu também, quanto à televisão, que as telas de parede substituiriam os equipamentos da década de 1960 e surgiriam cubos transparentes que tornariam possível a visão em três dimensões. Essas previsões se concretizaram? Parcial ou integralmente? Quais aproximações são possíveis entre as previsões e a realidade? Afinal, como era a realidade da década de 1960? E qual a tecnologia disponível? 

Linguagem acessível; obras e autores (sobretudo brasileiros) de fácil acesso; muitas obras audiovisuais do gênero disponíveis; clássicos da literatura em diálogo com a ficção científica; discussões sobre a condição humana; discussões sobre o passado, o presente e o futuro a partir de uma obra – quais motivos ainda precisa para ir atrás, conhecer, ler e, se for professor, trabalhar a fc dentro das salas de aula com seus alunos?


       
🎁Sabia que você pode ajudar O Bule (a continuar a ferver) com uma doação de qualquer valor (qualquer valor mesmo, viu💰)? Basta



Ou Pix