26 de out. de 2021

Micronarrativas para um dia amarelo

Por Cristina Ancona Lopez

Enigma

Sempre escorregava.

Nos pingos de água, nos pisos lisos e no gelo da neve mas, principalmente, nas palavras.

Passava por elas deslizando; 

Escapavam-lhe inexplicavelmente. 

De algumas conseguia apanhar a primeira ou última sílaba porém deixava escapar as do meio. Então, guardava apenas os pedaços e, de posse desses, passava a procurar, incansavelmente, suas partes.

Um dia deu-se conta de que tinha uma sílaba nas mãos. Apenas uma.

Sem saber de onde teria vindo procurou encontrar-lhe o sentido.

Escutou-a, mas nada dizia;

encostou-se nela, não havia aconchego; 

passou-a em seu corpo, sem sensações. 

Então soltou-a no ar.

Voou como se tivesse asas. 

Rodopiou, flutuou e fez desenhos contra o céu. 

Depois, caiu-lhe novamente nas mãos.

Até hoje procura, em vão, uma forma de decifrá-la.

  

Amarelas

Hoje lembrei-me das borboletas amarelas. Aquelas, que costumavam revoar na minha e na tua janela e batiam levemente as asas nos vidros.

Você se lembra de que roçavam nossa face quando abríamos as vidraças para que o vento nos revoasse os cabelos, nos fechasse os olhos e nos fizesse sorrir?

Havia as que entravam dentro de casa tornando a sala cheia da luz que o amarelo traz...

Como queríamos que ficassem ali! Estáticos para que não se assustassem, olhávamos silenciosos os seus movimentos.

Houve aquela que pousou na sua cama ali ficando por um dia e uma noite em que, para que não se fosse, dormimos no chão.

Assim que amanheceu o dia eu a vi voar pela janela aberta. Não, jamais prenderíamos uma das nossas borboletas.

Por isso voltavam e nos traziam a alegria dos que voam e são cobertos de cores.
Quando você se foi, pensei que se tinham ido com você. Depois soube que você pensava estarem comigo.

Hoje sei que não voltaram, nem em rápida visita, para nenhum de nós dois.
Foi a forma que encontraram para protestar por não termos sabido cuidar do sentimento que, de tão grande, nos ultrapassava e chegava até elas.  
 


Cristina Ancona Lopez é paulista, tocantinense, inglesa, vida variada, prato cheio de letras para colocar no branco de qualquer lugar. Não se lembra de andar pela vida sem um lápis, um papel, um computador, um tablet ou um celular, desde quando começaram os questionamentos, delinearam-se os tormentos, e descobriu-se com fortes sentimentos. Nas fases brancas de escritas, pensa, anota, mas nada cria, tornando-se incompleta. Gosta de ser chamada de Tita, como se autodenominou em idade bem pouca, não se lembra quando ou como. Quer leitores, críticas, troca de ideias deste e neste mundo por onde andar ímpar.