A sentinela
que foge
Paredes brancas
de um quarto hipotético
onde estou instalado.
Vejo através de sua indiferença
que não estou protegido de nada.
É sempre esse medo e essa ansiedade
a roubar-me a calma que não tenho.
Apenas alguns centímetros de argamassa
a me separar da vida que corre lá fora
com seus ruídos abafados e nítidos,
quando a eles se presta uma atenção nervosa.
Sinto que uma espécie de catástrofe se tece
no silêncio e vai acontecer a qualquer momento.
Devo portanto ficar acordado e atento
para não ser pego de surpresa e em pânico.
Mas uma tranquilidade não se conquista
através de meios tão precários de defesa.
Preciso me dispor a sair e enfrentar o mundo
com seu exército de homens rudes à espreita.
Então saio com o desconforto de não fazer parte,
com uma fragilidade revestida só pelo escudo de si
própria,
com um receio de ser ridículo só por me dispor a
andar
e com a certeza de que não posso ser livre aqui
ou em qualquer outra parte onde nunca estive.
A voz do
silêncio
Estou acordado
e não sonho,
mas a realidade
antecipada
me envolve.
A barba se me
desprende do rosto
fio-a-fio num frio
maior onde estou
me enregelando.
Tudo se dissolve
na aparência de ossos
de que fui formado,
e que é minha forma
mais resistente no mundo.
Mas a terra
(com seus vermes)
decompõe ao seu contato
todo o meu aprendizado
doloroso da vida.
E uma cova me absorvendo
transforma tudo o que fui
num triste resumo de pó
que um dia se chamou homem.
E que lhe deram um nome
(que tive), mas que a terra
aterra no tempo o traço
nominal dessa efemeridade.
Atômico
Nossos filhos nascem cegos
pela poeira do nosso tempo.
Nós ainda enxergamos
porque já entendemos o mundo
a partir da poeira que há nele,
e que não nos incomoda muito.
Do livro Areia (Á Fragmentação da Pedra) (João Scortecci Editora, 1989). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00