Por Rogers Silva
1 –
Em cima de uma pequena mesa, no centro de uma
sala, igualmente pequena, na casa de um rapaz, algumas folhas de papel. Ele,
com força e em círculos, rabisca o trecho de uma música digitada em uma delas.
Vinte e um anos... – reflete. Geisel Oliveira tem vinte e um anos. Pouca a sua
idade, que contrasta com a dor sentida neste exato momento. A dor é intensa.
Mas... Por que existe dor? Por quê? Meus olhos verdes... – por que me falava
isso tão carinhosamente? Por que demonstrar tanto amor? Amor?! Jéssica, qual a
razão de tudo isso?! – são os pensamentos de Geisel. Jéssica... – murmura –
Você foi a minha e a sua própria perdição... – baixíssimo.
2 –
“Estou com tanta fome! – exclamou Marina, olhando para Geisel e apontando para uma lanchonete.” “Eu também – falou ele.” “Vamos?” “Vamos.” Atravessaram a Avenida Floriano Peixoto e foram, rumo àquela lanchonete, saciar a fome. Já sentados, ela pediu: “Pra mim, um Guaraná Mineiro e um enroladinho de salsicha.” Marina, colega de faculdade de Geisel, era baixa, tinha cabelos negros, lisos, curtos, à beira do ombro. Não era bonita. Nem feia. Os olhos eram dum castanho escuro, comum. O que mais a destacava era seu sorriso, às vezes tão sem graça que, quem a visse sorrindo, mesmo assim concluía: Parece triste, ela... “Por que escolheu Geografia? – perguntou a Geisel, pegando o copo de refrigerante e levando-o à boca.” “É a área mais interessante que existe. E... – ele continuava, com empolgação.” Via-se no olhar da moça um certo deslumbramento. Por que fixava esse olhar tão inquietante? Era a beleza de Geisel? A inteligência? Ele era muito bonito – assim falavam suas amigas e, sobretudo, com ênfase na entoação, Andressa, sua melhor amiga. “Você é muito inteligente, Geisel – disse-lhe Marina, após ouvir dele uma breve explicação sobre a escolha do curso. – Realmente, Geografia é muito interessante.” Acabado o lanche, bocas sendo limpas e guardanapos. Três horas da tarde. Era dezembro. Provas, apresentação de seminário, resumos, pesquisas, fichamentos etc. A teoria fora estudada por eles. Mas, para o trabalho, o que importava era a prática. Então, próximo ao fim do semestre ali estavam Marina e Geisel, numa tarde quente de uma segunda-feira, realizando pesquisas sobre a estrutura econômica e a demografia da cidade. Voltando à praça Tubal Vilela, Marina propôs descansarem um pouco. Afinal, mais de três horas que eles andavam pelo centro de Uberlândia, o pensamento num bom trabalho e numa boa nota! Sentaram-se num dos bancos da praça, sob uma sombra que disfarçava o calor que antecedia o verão. Não havia exatamente uma amizade entre eles. No começo do curso houve, sim, uma queda de Marina por Geisel. Na verdade, algumas das moças da sala ficaram encantadas com a boa oralidade e, sobretudo, com a sua beleza e os seus olhos verdes. No centro da cidade, dois jovens conversavam, sentados num banco da sua praça mais famosa, lado a lado, as cabeças viradas um para o outro.
3 –
“Jéssica! – gritou Marina,
não muito alto, a uma moça que passava pela praça a uns dez metros de distância.”
A estranha olhou para o lado, um pouco surpreendida, reconheceu e encaminhou-se
até a outra. Sorriu. “Oi, Marina, como está? – chegou dizendo com
espontaneidade.” Marina se levantou, cumprimentou-a com um abraço – um forte
abraço – e um beijo no rosto. Quem as visse acharia que há anos não se falavam.
Mas não; eram amigas e praticamente todos os dias se encontravam. Após alguns
segundos de cumprimentos, Marina virou-se ao rapaz e disse: “Este é o Geisel,
amigo de faculdade; estamos fazendo uma pesquisa.” Ele e Jéssica não se
conheciam. “Oi – disse ela, olhando-o de uma maneira fixa, a feição sorridente.”
“Oi – retornou.” Jéssica se sentou e juntou-se à dupla. Como Jéssica era boa de
papo! Isso foi o que mais chamou a atenção de Geisel naquele dia. Ela
conversava com uma simpatia enorme. “O que você faz? – tentou ele, voltando-se para
Jéssica.” “Estou fazendo cursinho pré-vestibular.” “Vai prestar pra quê?” “Eu
não presto para nada – riu. – Tô brincando... Ainda não sei, mas creio que vou
acabar escolhendo Psicologia.” “Hum, Psicologia deve ser muito interessante.”
“É, deve ser.” Houve uma conversa um pouco formal entre os dois nesse dia.
Jéssica, em beleza, não tinha muito de ser reparada: os cabelos negros,
crespos, os olhos castanhos claros e um corpo ao qual faltava uma postura
minimamente sensual. Era, no máximo, simpática. Ah, simpática era, e muito!
Tinha a pele morena, sem muito brilho, dum moreno desbotado. Neste primeiro
momento Jéssica pareceu, a Geisel, uma mocinha ascética e pouco sedutora.
Marina, no meio da conversa, um pouco desorientada, olhou-os e questionou: “Ah,
agora viraram amigos e se esqueceram de mim, né?” “Claro que não, meu bem, que
isso – disse-lhe Jéssica.” Antes de ir, Jéssica deu o número do seu telefone
para Geisel e perguntou: “Vai ligar?” “Sim, ligo. Claro que ligo.” “Ele é muito
difícil; já tem um monte de mulheres no pé dele – interferiu Marina, deixando a
outra constrangida.” Mas o constrangimento foi disfarçado por um abreviado
sorriso. “Nossa, Marina! Assim você me deixa sem graça!” “Só estou te avisando.
Talvez você esteja iludida.” “Paara, Marina – Jéssica, elevando um pouco a voz.”
Geisel, com um charme incomum para a pouca idade, as observava e sorria. Os
olhos verdes, os cabelos claros, alto, corpo magro e atlético, muito
inteligente, ele era o sonho de consumo de muitas moças – dizia sua melhor
amiga, Andressa, que inclusive fora apaixonada por ele. “Você se preserva
muito, Geisel. Por que não dá moral pra quase ninguém? – ela perguntava.” Às
vezes ele aparecia com uma moça aqui, ali, sempre muito bonita, mas nada muito
sério. Andressa não deixava de ser bonita, mas era amiga e com amiga... –
disfarçava ele, brincando. “Se você quiser, você consegue qualquer mulher –
falava Andressa a Geisel quando separavam um momento a fim de cultivarem a
amizade.” “Que isso! As coisas não são assim, não.” “Além de ser bonito, você é
muito educado e compreensivo. Sim, é um pouco desatencioso, isso ninguém pode negar.
Também é... – e continuava.” De fato, não era muito atencioso. Vivia num mundo,
auto-criado, seu, na maioria das vezes calado, observando. Quase nunca usava de
pretensão por causa de sua beleza. Não que não se achasse bonito, mas...
Jéssica, antes de ir, pegou na mão de Geisel. Prolongando o cumprimento, deixou escorregar seus dedos pela mão dele, que a olhou como se nada tivesse percebido. “Jéssica é simpática – disse a Marina depois que a outra se despediu, ainda a vendo, quase numa das pontas da praça, perto da avenida Floriano Peixoto com a Duque de Caxias.” “Ela é legal – sem muito entusiasmo, respondeu Marina, que ao olhá-lo percebeu que Geisel ainda fitava Jéssica. “O que você viu nela? – perguntou Marina, transparecendo um ciúme (ou inveja) que tentou disfarçar.” “O quê?... – fingiu Geisel, despercebido.” “Nada... – dissimulou a colega.”
Ela é muito simpática. Algo nela me encantou. O quê? – Geisel se perguntava, olhos para a janela fechada, na mesma noite em que a conheceu. Apenas na mesma noite. Depois, com o raiar e o passar dos dias, a esqueceu. Como sempre ocorria.
* Publicado originalmente no livro Manicômio
(2012).
** Continua no dia 19 de abril.