10 de abr. de 2021

A poesia é tudo aquilo que ela não quer dizer

Por Ramon Carlos

 

Magnitude

Sangue talassêmico

Os cabelos brancos de Virgínia

Enquanto estende as roupas, cantarolando

Feito pássaro de madrugada, fazendo ninho dentro do túnel

Aves de peitos luminosos, como se tivessem sido pintadas

Por Rafael, no intervalo das Madonas

Esquinas de um corpo esfarelado em diamantes

Faíscas que verberam entre as frestas dos seus olhos

Antíteses selando um acordo efêmero

Natural como cobras nadando em leite materno

“Rafael tem algum quadro assim?”

Uma dose de sangue talassêmico com gás

A noite risca fósforos no crepúsculo

As estrelas acendem cigarros quando morrem

Virgínia ri enquanto prende os cabelos

Seios rijos como a ponta de um prego

Ela desenha sua imagem no espelho

Pergunta quando os fiapos brancos pararão de nascer

Lembra da lua de dias atrás

“Parecia uma boneca contando piadas”

Lembra da chuva em seu colo ontem

“Tempestade anônima sem gás”

Veste-se com a etiqueta de Versailles

Suspira ao ouvir o piano do vizinho

Mas ele não sabe tocar porra nenhuma

“Só belisca ternos de gesso”

Vai fritar ovos, conta piadas

Boneca em órbita, placebo de Vênus

 

Vou até a janela hoje, a luz do seu quarto está apagada

Risco um fósforo, acendo um cigarro

Observo a noite

E não morro, tal qual

As estrelas

 

Granada

Da mancha no olho casto

Do prurido na pele branca

Dos calos relevantes no pé 33

Das paisagens que sobram na cama

Leio Azevedo por 3,99

O primeiro livro vendido no bazar

Segundo a caixa

Pedido de ordem nas cruzadas

Não sei a capital do Líbano

Sugiro Lindóia do Sul

Muita letra

“Não sei”, por fim, nos une

Uníssonos

Tocamos cabelos e formigas

Nas paredes mofadas

Nos panos de pia

No pacote de lixo

Na folhagem que atrai abelhas

Nas folhagens que nos une

Que regamos com suco de limão

E adubamos com erva molhada

Assim sentamos à margem

Das tristes notícias do erro comum

Das traças viciadas em naftalina

Dos equívocos das tesouras com ponta

Do nome no lápis sem ponta

Da taça trincada por um erro comum

Dos beijos si-lá-bi-cos

Voltamos a caminhar

Torcemos nossos corpos

Na quina do sofá

Na porta do box

Achamos engraçado esse porte de arma

Quebramos, esparramamos

Os cacos da porcelana verde por dentro

Vamos embora, vamos embora

Nosso chão tem carvão em brasa

Nossos símbolos vestem chapéu

Nossa ternura usa bigode

Nossas extravagâncias estão no sótão

Deixo a toalha de banho marcada de cera

Uso dois pingos de gel

Repito a cueca

Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)

Cheio de ilustrações geométricas

Mas saem voando, capazes de orbitar

Vamos embora, vamos embora

Ela deixa rastros de primavera pela casa

Ela queima como um verão bêbado

Ela é outono quando sonha e inverno quando chora

Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego

Seus cigarros ardem como incenso

Damos nomes aos insetos que respiram pela boca

Das patrulhas pelas travessas

Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol

Da noite que embrulha a ópera

Dos centímetros que separam metros

Do último furo no cinto

O álibi como um simples não

À margem, à margem

De um confuso ato

Os espelhos podem marinar

A recompensa que nunca acaba

Ela já está dormindo

Minha lira de 29 anos


Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: Mallarmargens, LiteraturaBr, Acrobata, Philos, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana e Cidadão Cultura.