Por Ricardo Novais
Parei no farol. Eram pouco mais de dezenove horas. Estava garoando, era começo de noite, a pandemia não tinha fim. Esta cidade combina com garoa, boca da noite e pandemia; tem o vírus do congestionamento e do mofo na alma.
No farol, aproximou-se um senhor. Ele veio devagar, andava como um moribundo. Não usava máscara. Pediu-me dinheiro, respondi-o que não tinha. Ele não entendeu. Havia uma etiqueta grudada em sua camisa de flanela amarrotada e puída. Era uma etiqueta de hospital, já descolando por causa da garoa. Julguei ser um paciente de hospital público.
__ Não tenho dinheiro, só estou com cartão – utilizei-me da velha política social da cegueira seletiva.
O pedinte continuou com a mão direita erguida, em forma de concha, como se implorasse. Ele disse algo, mas era em som tão baixo e rouco que eu não entendi. Por fim, fez menção de ir embora mendigar ao veículo de trás, mas antes olhou para dentro do meu carro.
__ Tem uma blusa de frio aí?
Na hora não tive reação. E o homem foi embora. Não julgue à toa, senhor leitor filantropo e dona leitora adepta dos direitos humanos. A caridade é uma questão de surpresa, naturalmente boa. Boa só, não. Boníssima! Desconta-se minha omissão de bananão ao fato de que fiquei perturbado. Muito perturbado!
Lembrei-me da blusa velha no banco de trás do carro. Eu, usando uma malha novinha. Peguei a blusa velha e puxei-a para o banco da frente. As gotas da garoa caíam mais forte, já chovia grandes milímetros. Milímetros de pensamentos. Não consegui ver o homem pelos retrovisores em meio à nevoa e a penumbra da noite.
O farol abriu, continuei muito perturbado. Avancei com o carro, atravessei o cruzamento e segui em frente. Ficaram as gotas como lágrimas acumuladas no retrovisor. Não era a blusa de frio, que não dei, o motivo de minha perturbação. Eu estava inquieto porque o mendigo não usava máscara. Ora! Havia uma pandemia em curso na fase mais restritiva de convivência da cidade. Quanta contaminação aquele pobre diabo poderia transmitir em seu vício de estender a mão em súplica nos cruzamentos?
Poucos metros à frente, instintivamente, dei seta à esquerda e virei na entrada do hospital. Retornei ao mesmo farol congestionado de antes. A blusa velha no banco da frente, um pacote de máscara sanitária em cima do painel. Não vi o mendigo.
O farol demorou a abrir, mas, desgraçadamente, abriu. Avancei com o carro, parei em um posto de gasolina e joguei o pacote com as máscaras sanitárias em uma lata de lixo. Nisto, repentinamente, um vulto, sem máscara, surgiu por detrás da garoa, abriu a porta do carro e pegou a velha blusa. Reconheci-o. Corri em seu encalço, atravessando a grande avenida; bruscamente, uma ambulância, tão alva como estridente, furando o farol em alta velocidade, atropelou e estatelou o ladrão no asfalto molhado e poluído.
Agachei-me e olhei para o rosto daquele homem. Embora de feição tão familiar, não tinha mais certeza se o reconhecia. Peguei o velho agasalho das mãos sujas do atropelado e a usei para limpar as manchas de sangue que haviam respingado em minha blusa nova. Mas a máscara havia caído. Por certo, ao deixar minha máscara para trás, ajudei a espalhar o vírus megalomaníaco, de enfermidade epidêmica amplamente disseminada, que circula por esta sociedade como cepa eterna.