25 de mar. de 2021

Mercúrio

Por Karolyn Alves

Sempre às três da manhã. Cinco minutos antes, ou depois. Mas, em geral, nessas três primeiras horas do dia: é quando acordo. A luz assusta meus olhos, deixo o celular de lado. Levanto, bebo alguma água. Leite puro, se meu estômago estiver tão incomodado quanto o fundo das minhas órbitas. Volto à cama, depois de tocar o mármore frio do banheiro – onde a luz é ainda mais branca, quase azulada. Não em um bom tom de azul, claro. Aquele tom artificial, de hospitais e silêncios. E não consigo mais dormir. Só devanear, entre os lençóis, entre sonhos que se desprendem ao redor de idas e vindas dos barulhos lá fora. Onde quer que seja o lá fora.

Já li que três da manhã é uma espécie de horário crítico, o momento médio em que o corpo alcança sua menor temperatura. É como me sinto. Uma partícula perdida em um deserto frio, branco. O azul volta. Quando amanhece, já não me sinto. Apenas levanto, e recebo mais da luz artificial na frente do computador. Quero dormir, mas também não. Nunca aceitei bem essa ideia de se deixar ir ao inconsciente durante o dia, sob o olhar do mundo acordado. Os sonhos foram feitos para a escuridão, quando ninguém está à espreita dos olhos cerrados, trancas das fantasias e segredos que se desenrolam atrás. Histórias não permitidas mesmo a nós, mas que eventualmente escapam à consciência, e nos assombram. Ou nos divertem, quando não procuramos decifrá-las. E é melhor assim.

Preciso dormir. Preciso acordar.

As palavras que leio na tela são apenas palavras. Não sussurram ao meu ouvido, não me causam arrepios. O café é amargo na xícara, morno na língua. Levanto da cadeira e assisto o líquido escuro indo embora pela beirada da pia, engolindo o ralo e o que quer que haja a seguir.

Apoio as palmas na bancada, meus ombros se inclinam sobre mim – como um abraço pesado. Eles dizem “está cansada, está caindo”. Mas estão ao meu redor, e eu rio. É arenoso na garganta. Os ombros suportam o mundo, diz Drummond. Mas os meus não chegam a tudo isso.

Suportam a mim, e é o bastante.

Me sento novamente à frente do computador, e quero escrever. Mas sobre o quê? Claro, o clichê da jovem autora que não encontra inspiração - embora magicamente vá encontrá-la. Estou ficando ácida, penso. Sorrio. 

Não encontro nada em mim. Não existe mágica.

Só a realidade. Só, na realidade. 

Por isso, volto às leituras. Teorias, romances, contos. Poesia, às vezes. Simplesmente não crônicas. Nunca as apreciei muito. De qualquer forma, sou arrancada desse devaneio irrelevante para a vida dos cronistas pelos toques rápidos no portão. Arrasto-me do sofá para o chão, da porta para a garagem – com aquele tom horrível de laranja nas paredes. Girar a chave revela a mim uma mulher também laranja. Marta.

Ela mora na casa ao lado, e desde que lhe dei singelo “bom dia” em uma sexta-feira qualquer, tende a achar que me interesso pelos seus assuntos. Foi um grande erro, aquele cumprimento. Mas fazemos coisas estúpidas quando estamos felizes.

__  Carina! Tudo bem?

Sorrio, sentindo as cordas por trás dos meus lábios se prendendo atrás das orelhas. Sobre a nuca, um homenzinho segura as pontas. Sou sua marionete. Ou ele é a minha? Rio. Marta provavelmente pensa que é uma reação à visita, e eu imediatamente me arrependo. Maldito homenzinho.

__ Tudo. 

Mantenho os olhos nela, esperando que consume o que quer que esteja mantendo seu corpo na minha frente. Marta tem aqueles olhos grandes e aquosos, cheios de mercúrio: se espalham pelo chão em milhares de bolinhas, escorrendo por baixo das grades, invadindo o quintal e as casas das pessoas. Tenho uma súbita vontade de procurar pelas bolinhas na minha garagem, cheia de caixas há pelo menos cinco anos – quando me mudei. E fazê-la engolir. 

Mas não faço nada, e escuto o homenzinho dizendo que não há mercúrio nenhum.

__ Posso quebrar um termômetro.

Marta tomba a cabeça, pensativa. E ri, por via das dúvidas. Consigo ouvir seus pensamentos tolos reverberando, procurando a piada que deve ter perdido. Sorrio, sem as cordas.

__ Precisa de alguma coisa?

Ela balança os braços magros com desdém, as unhas vermelhas riscam o ar. Parecem garras.

__ Ah não, eu queria só contar o que resolvi, Carina. Eu ontem deixei de ser boba e falei de vez para aquele motorista que ele pode muito bem ir trabalhar e parar de explorar os outros. 

Ela continua falando sobre a grande conquista que fez ofendendo o motorista da van. Pergunto a mim mesma quanto tempo vai levar até que fale do carro que comprou, já que está balançando a chave de um lado para o outro – cheia de pimentas genéricas presas. Também fico imaginando por que as pessoas acham que um legume de plástico afasta azar, e por que elas sequer acreditam em azar. E por que eu ainda estou parada, assistindo aos lábios finos pintados de rosa se colarem e descolarem.

Porque ela não faz nada de ruim a você, diz o homenzinho. Mas ele está errado, e sabe disso. Talvez diga apenas para me irritar, gosta de me ver nervosa. É fato que vir encher meus canais auditivos de pimentas e carros é uma atitude premeditadamente maligna. A ideia do mercúrio soa como uma vingança interessante, e me deixo explorá-la.

Mexo a cabeça, para cima e para baixo. Claro, Marta. Está certa, Marta. Muito bem, Marta. É tão cheia de atitude, Marta. 

Vá embora, Marta.

Quase meia hora depois consigo bater o portão de ferro, e estou irritada. O homenzinho solta as cordas, e meus ombros parecem menos pesados por um momento. Talvez ele tenha ido embora. Talvez tenha morrido. Talvez eu mesma tenha morrido, e todo esse laranja nas paredes lá fora seja minha punição.

Que seja. A risada soa como se meus pulmões estivessem cheios de fumaça, embora eu não fume. Podem ter queimado por dentro. Oxigênio não é um pressuposto da combustão? Algo assim. Engraçado. Somos grandes cilindros de gás esperando pela faísca que nos libertará.

O dia consome a si mesmo e meus olhos são incapazes de captar. Quando a noite chega, sou levada à universidade pelo homenzinho. Afinal, foi para isso que estudamos e trabalhamos tanto, não é? Murmuro que sim. É mais fácil concordar sem pensar tanto à respeito. Estou aprendendo, enfim.

Quando a aula acaba, estou sentada em um banco de cimento. Algumas garotas riem, não muito longe, e está frio. Mantenho a mochila sobre o colo como um escudo. O rapaz de máscara nota, abrindo um sorriso de cera. Ela escorre ao nosso redor, cobrindo a grama úmida. Deveria fugir, diz o homenzinho. Eu fico.

__ Manter um objeto sobre as pernas é um sinal de insegurança, sabia?

Sei que sorri, inebriada pelo riso morto que nascia no meu peito. Ah, querido. Começo a pensar o que motiva alguém a tecer esse tipo de comentário. A relembrar que a própria presença causa desconforto, medo. Estou entendendo a vela. E a máscara.

__ É. Eu sabia.

Ele aperta as sobrancelhas, vitorioso. Lembra-me Gaston, de A Bela e a Fera. Olho para o relógio, e ainda falta muito para as onze.

__ E por que está nervosa?

Dessa vez, deixo o ar sair. Queima toda a minha língua, como um ácido. Como mercúrio. E estou de volta às bolinhas, e quero que elas entrem pelas frestas dos dentes de Gaston. A textura do metal líquido. Tão superior à cera, grudenta. Lisa como a Verdade. Como a Justiça. Como uma vingança.

O homenzinho repete que me avisou, mas não retoma as cordas. Deve querer ver até onde vou.

__ Não conheço você.

Gaston ri, e coloca as mãos em meu cabelo. Afasto-o, instintiva. Agora estou com raiva, porque a cera irá estragá-lo todo.

E me levanto. Mesmo que ainda não seja onze horas. Ele não me segue, mas eu sabia que estaria ao meu redor nos próximos meses. Com todo aquele cheiro que me deixa doente. Parafina. 

Enquanto volto para casa, não sinto meus olhos – e soa como uma viagem no tempo. O homenzinho ri de mim, retoma as cordas. E eu peço a ele que me deixe resolver isso. Estou cansada, estou caindo. E já é noite, afinal. É lícito que eu vá aonde o sol não me permite. Laranja.

Ele me dá um fósforo, enfim. Talvez tenha pena de mim. Ou simplesmente queira ver a explosão, como um fundamentalista chegando ao paraíso. 

Quando durmo, sonho com olhos prateados.

Quando acordo, tenho olhos prateados.

Quebro o termômetro sobre a mesa, e não me corto com ele. Escolho duas bolinhas, e elas me fazem feliz.

São três da manhã, e a rua é como o ralo da pia.

 

Karolyn Alves, 19 anos, moradora do interior de São Paulo e estudante de Psicologia (UNESP).