Poética I
Há um grito
em mim
que não distingo
do grito
que ouço além
da minha surdez.
De noite adormeço
com o sopro da morte
que dissipa em nós
a certeza de que
este sono é trágico
e pode ser o último.
A cidade
não sabe das sombras
que gritam pelas ruas
sem perturbar o silêncio
da espécie adormecida.
O poeta
está sitiado
pelos seus fantasmas
e caminha na rua
com seus passos
de falso duende.
O poeta
chega ao cais deserto
e compreende que o seu ódio
é o instrumento legítimo
para igualar os homens
no que eles têm de precário.
O poeta escarnece
de si mesmo mas sabe
que há certas coisas
que não se aceita assim
impunemente e sem revolta.
Os homens estão todos presos
e o poema é apenas um grito
que sufoca em palavras o desespero
dessa nossa cela absurda.
Do livro Areia (À fragmentação da pedra) (João Scortecci Editora, 1989). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço: R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.
Poética II
dissipa o
sonho
de domar o
verbo.
É estranho
como
as palavras
parecem
ter
consciência
de si
mesmas, e
se procuram
e se
acham no
poema.
É como se o poeta
fosse apenas
um
coautor dos
versos
que se
escrevem e
dão uma
função aos
escritores,
que os
transcrevem.
Do livro Inventário de sombras (Editora Multifoco), esgotado.
Poética
III
Há muito tempo
que não escrevo
sequer um poema.
E ontem quando
eu estava vendo
uma entrevista
com um escritor
latino-americano,
pensei que era
chegada a hora
de eu quebrar o
silêncio e entrar
em comunhão
com as musas.
Aconteceu
no entanto
de elas estarem
em recesso comigo
devido ao motivo
de minha longa
ausência.
Então aprendi
a simples lição
de que a literatura
deve ser praticada
com a paixão jovem
e renovada de quem
não teme a morte
e nem a desafia,
apenas tece o seu
canto de espera e
monotonia.
Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), esgotado.