18 de dez. de 2020

A república da borboleta que não podia mais voar

Por Ricardo Novais

Três ou quatro borboletas batiam as asas frenéticas e contentes a alçar voo pelo céu resplandecente do parque da cidade, numa harmonia descompromissada e deleitosa. Súbito, arrebenta horrendo efeito imponderável. Uma das borboletas, a de tom mais azul e cintilante, pousou por instante gentil num parapeito de prédio comum encantando a dona da varanda. Mas tamanho encanto virou hostilidade. Surpreendida, a borboleta ferida e assustada voou o mais célere que pode de volta ao parque. Lá se reconfortou numa grande e florida árvore, muito esverdeada, e, com o apoio das amigas lepidópteras, sorriu à própria sombra. Entretanto, a borboleta machucada não podia mais voar.

Não sabe como é triste, leitor, a vida de uma borboleta que voar não pode mais. O cancro lhe consumia até tão menor do que os pensamentos férreos, como tenazes ao arcabouço, e do que a imaginação, verve e repentina, de um elegante sobrevoo à esquina da Rua XV de Novembro, flutuando, sorrateira e saborosamente, na ala sul da Praça da República e norte da Praça da Bandeira. Mas fantasiando o abstruso, encarcerava ao mesmo tempo a alma; e cantando solitária e melancólica a poesia do que se perdeu, desejava voltar à perspectiva de pequenina larva. Centenas de sonhos insistiram por pisotear sua vida... E, como o tédio enraizado a tudo ensina, desistiu de tentar debater as asinhas; e foi este também o último solilóquio da cintilante borboleta poeta – tudo revelado pela prosa testemunhal oblíqua de uma asseada garça que ainda vive naquele parque.

__ Libertou-se. Pobrezinha! – constatou a garça.

__ Toda borboleta tem direito a voar... – concordaram as amigas lepidópteras, surpreendentemente conformadas, num agrupado suspiro de lamento tão resignado como acolhedor.