15 de dez. de 2020

A megaestrela de 2020

Por Allyne Fiorentino

Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria...”

 A cartomante - Machado de Assis.


 Embora eu acredite que os fenômenos naturais sejam por si só especialmente divinos, às vezes, é impossível não se deixar levar pelas nossas próprias tessituras mentais em busca de uma unidade que nos escapa pela fluidez. Essas explicações bárbaras me pegaram de surpresa ontem à noite e, desde então, estou travando essa luta interna com meu próprio vislumbre.

Mas antes que eu resolva me embrenhar nesse embate nada original, me acompanhem nessa trajetória: há 800 anos, portanto em 1220, ano em que apareceu no céu uma estrela descomunalmente grande, a igreja católica canonizava São Bento de Núrsia, monge que praticamente fundou nossa organização social e política cristã. Seu projeto civilizatório resgata os valores cristãos que estavam “esquecidos”. O monge (leia-se a sociedade) deveria ser “não soberbo, não violento, não comilão, não dorminhoco, não preguiçoso, não detrator, não murmurador". Fosse Bento mais bárbaro ou mais observador, ele teria vaticinado que sua tentativa civilizatória falharia miseravelmente. Um dos milagres que fez de Bento um santo foi não beber uma taça de vinho envenenada (pasmem!) por seus próprios companheiros de monastério.

Há poucos anos, o Papa Bento XVI renunciou ao seu papado (coisa que deixou perplexos todos que estavam acostumados a ver papas mortos antes de rebelarem) e, dizem as “más línguas”, que sua renúncia tem a ver com todas as coisas ruins que ele via dentro do Vaticano e que o levou ao limite. Um suposto mordomo teria roubados documentos pessoais e estaria escrevendo um livro sobre ele. Bom, de Bento a Bento parece que nada mudou.

1220 anos antes de Bento ser considerado santo por seu milagre de não beber do veneno do próprio monastério, a mesma grande estrela guiou os três reis magos em direção ao rei dos judeus. Jesus, em outras palavras, também era um grande civilizador por assim dizer, pois tudo aquilo que parecia bárbaro precisava ser amansado. Entre o grande evento do nascimento de Jesus e o nascimento de Bento decorreram cerca de 500 anos. Mais ou menos mil anos depois do nascimento de Bento, outra viagem “civilizatória” chegaria à América. Nossa tentativa de civilidade é cheia de histórias com finais infelizes. 

 E chegamos a 2020, ano em que uma pandemia, que nada tinha de imprevista, tomou conta do mundo. Apesar de todas as mazelas pelas quais já passamos, não estávamos preparados. Fôssemos mais bárbaros e observadores, teríamos entendido que nosso projeto de sociedade continua falhando miseravelmente. Que o grande projeto de humanidade excluiu, ora vejam, os humanos. Estamos apenas navegando, à deriva, na nossa grande colcha humana com entrecruzamentos coincidentes. Li, e essa foi a notícia que me surpreendeu, que em 21 de dezembro acontecerá a conjunção dos planetas Júpiter e Saturno, o que dará a impressão de uma megaestrela no céu. A mesma que iluminou aqueles que santificaram Bento, a mesma que pode ter iluminado Jesus.

É preciso admitir que entremeadas na grossa tessitura de nossas vidas, há tantas coincidências estranhas. Arrisco dizer que metade daquilo que sustenta esse tecido existencial são esses acontecimentos entrecruzados que nos figuram um rastro de além. 

Se por um momento estivéssemos na pele de Camilo e olhássemos nos olhos de uma cartomante indagando: A estrela de Belém é um bom presságio para nós que sofremos tanto ao longo desse ano de 2020? Ela certamente diria: Não tenha medo de nada. Nada de ruim acontecerá.