Por Allyne Fiorentino
“Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria...”
A cartomante - Machado de Assis.
Embora eu acredite que os fenômenos naturais sejam por si só especialmente divinos, às vezes, é impossível não se deixar levar pelas nossas próprias tessituras mentais em busca de uma unidade que nos escapa pela fluidez. Essas explicações bárbaras me pegaram de surpresa ontem à noite e, desde então, estou travando essa luta interna com meu próprio vislumbre.
Mas antes que eu resolva
me embrenhar nesse embate nada original, me acompanhem nessa trajetória: há 800
anos, portanto em 1220, ano em que apareceu no céu uma estrela descomunalmente
grande, a igreja católica canonizava São Bento de Núrsia, monge que
praticamente fundou nossa organização social e política cristã. Seu projeto
civilizatório resgata os valores cristãos que estavam “esquecidos”. O monge (leia-se
a sociedade) deveria ser “não soberbo, não violento, não comilão, não
dorminhoco, não preguiçoso, não detrator, não murmurador". Fosse Bento
mais bárbaro ou mais observador, ele teria vaticinado que sua tentativa
civilizatória falharia miseravelmente. Um dos milagres que fez de Bento um
santo foi não beber uma taça de vinho envenenada (pasmem!) por seus próprios
companheiros de monastério.
Há poucos anos, o Papa
Bento XVI renunciou ao seu papado (coisa que deixou perplexos todos que estavam
acostumados a ver papas mortos antes de rebelarem) e, dizem as “más línguas”,
que sua renúncia tem a ver com todas as coisas ruins que ele via dentro do
Vaticano e que o levou ao limite. Um suposto mordomo teria roubados documentos
pessoais e estaria escrevendo um livro sobre ele. Bom, de Bento a Bento parece
que nada mudou.
1220 anos antes de Bento ser
considerado santo por seu milagre de não beber do veneno do próprio monastério,
a mesma grande estrela guiou os três reis magos em direção ao rei dos judeus.
Jesus, em outras palavras, também era um grande civilizador por assim dizer,
pois tudo aquilo que parecia bárbaro precisava ser amansado. Entre o grande
evento do nascimento de Jesus e o nascimento de Bento decorreram cerca de 500
anos. Mais ou menos mil anos depois do nascimento de Bento, outra viagem
“civilizatória” chegaria à América. Nossa tentativa de civilidade é cheia de
histórias com finais infelizes.
E chegamos a 2020, ano em que uma pandemia,
que nada tinha de imprevista, tomou conta do mundo. Apesar de todas as mazelas
pelas quais já passamos, não estávamos preparados. Fôssemos mais bárbaros e
observadores, teríamos entendido que nosso projeto de sociedade continua
falhando miseravelmente. Que o grande projeto de humanidade excluiu, ora vejam,
os humanos. Estamos apenas navegando, à deriva, na nossa grande colcha humana
com entrecruzamentos coincidentes. Li, e essa foi a notícia que me surpreendeu,
que em 21 de dezembro acontecerá a conjunção dos planetas Júpiter e Saturno, o
que dará a impressão de uma megaestrela no céu. A mesma que iluminou aqueles
que santificaram Bento, a mesma que pode ter iluminado Jesus.
É preciso admitir que
entremeadas na grossa tessitura de nossas vidas, há tantas coincidências
estranhas. Arrisco dizer que metade daquilo que sustenta esse tecido
existencial são esses acontecimentos entrecruzados que nos figuram um rastro de
além.
Se por um momento estivéssemos na pele de Camilo e olhássemos nos olhos de uma cartomante indagando: A estrela de Belém é um bom presságio para nós que sofremos tanto ao longo desse ano de 2020? Ela certamente diria: Não tenha medo de nada. Nada de ruim acontecerá.