8 de nov. de 2020

Efeito Borboleta

Krishnamurti Góes dos Anjos

Ele abre a loja preocupado, agoniado, aflito. Tem de pagar um extra ao contador que faz artimanhas para sonegar os impostos mensais da loja. Precisa também ter em caixa dinheiro vivo para eventuais propinas para a fiscalização da Prefeitura ou da Secretaria da Fazenda. Tem de ser aos poucos. Vou agora mesmo remarcar o preço daquelas bolsas Louis Vuitton fabricadas no Paraguai. Cem reais em cada uma, para começar, está razoável. Duas horas depois, uma madame, muito afetada e escandalizada com o valor que lhe pedem pela bolsa, paga assim mesmo, exige nota fiscal e sai da loja pensando: Vai sobrar mesmo para a diarista. Peço a ela paciência. Digo que as coisas estão difíceis, que estamos fazendo das tripas coração para mantê-la lá em casa. E ainda peço e recomendo discrição absoluta. No fim do mês, acertamos tudo. A Maria, que está ansiosa na casa da patroa esperando o pagamento da semana, ao saber do adiamento, primeiro fica chateada e, depois, aborrecida, se atrapalha com o pano de prato e deixa cair no chão uma taça de cristal. Os cacos vão escondidos para o lixo sem fazer ruído. E quando se lembra então dos compromissos a pagar hoje, resolve não tirar as teias de aranha que se acumulam no teto da sala; e o feijão, que se dane! Vai salgado mesmo para a mesa na hora do almoço. Ó, Jesus do céu! Maria vai ter de adiar o pagamento dos trinta reais no mercadinho no qual comprara fiado, dos quarenta reais que a vizinha desfalcou do pagamento da própria conta de luz para emprestar a ela quando o gás faltou na semana passada e dos outros trinta reais que ficou devendo no salão da última vez que foi fazer o cabelo. Nesse mesmo dia houve a suspensão do fiado no mercadinho, e quem ficasse sem comprar a crédito de caderneta. A luz da vizinha foi cortada. E a dona do salão, com um mau humor súbito e insuportável, acabou queimando o couro cabeludo de uma cliente com o ferro de amansar cabelo.

Tudo isso ficaria sepultado no esquecimento dos sofrimentos diários, sem qualquer relação entre si, na favela em que Maria morava, não fosse o Zé Pretinho, o filho adolescente da vizinha que, ante o corte da luz, resolveu ir só mais uma vez à boca de fumo vender umas pedrinhas de crack. O que decorreu poderia induzir os que acreditam em tudo àquele tal efeito borboleta da teoria do caos. Uma teoria completamente amalucada segundo a qual a resultante de determinado cálculo influi no resultado de outro, quando passa a ser dado numérico deste (e assim por diante). Segundo essa alucinação, o bater de asas de uma simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e provocar consequências de proporções inimagináveis. Quem vai acreditar numa maluquice dessas? O certo é que Zé Pretinho vendeu — e fumou também — umas tantas pedrinhas. Chegou a levantar os cem reais que pagariam a conta da luz. Mas deu azar. Azar é o nome. A polícia fez uma batida surpresa na Cracolândia. Correrias, pedradas, bombas de gás, gritaria, empurra-empurra, perseguições e tiros. Um acertou em cheio o peito do Zé Pretinho. Levado ao hospital, veio a óbito. A vizinha, mãe de Zé Pretinho, ficou sabendo do ocorrido pelo médico plantonista. Após breve relato das condições nas quais que ele deu entrada, o médico concluiu: Um quadro como o dele precisaria de recursos dos quais infelizmente não dispomos aqui. Não deu tempo nem de transferi-lo. O governo não tem liberado verbas para a compra de equipamentos, instrumental e material cirúrgico, e ficamos com a capacidade de atender muito limitada. Sinto muito. Nesse mesmo instante, aquele lojista das bolsas Louis Vuitton ordena ao funcionário: Hora de fechar as portas. Amanhã teremos outro dia infernal pela frente. Que país é esse? Tenho de matar um leão por dia para sobreviver.