Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Desde as folhas de figueiras que encobriam as “vergonhas” de
Adão e Eva até as próteses siliconadas da atualidade, o corpo humano, ao longo
do tempo, vem recebendo coberturas, enxertos vários e muita, muita reflexão. Inclusive,
a questão da divisão entre mente e corpo humanos foi problematizada pelo
filósofo René Descartes (1596 – 1650) no livro Discurso do método,
publicado originalmente em 1637. Descartes, já em sua época, refletiu na forma
como se concebe essas estruturas e a essência de cada uma separadamente.
Entretanto, essa discussão não é finda nem passível de conformidade geral, mas
vem sendo atualizada pela filosofia e pela literatura, como é o caso de algumas
distopias contemporâneas, algumas das quais com visadas cada vez mais
negativas.
Cabe a referência a René Descartes, porque lembramos do desenvolvimento de tal pensamento. Na obra daquele doidão francês, permeia a autoridade da razão, conceito banal para o homem moderno, mas um tanto novo para o homem medieval (muito mais acostumado à autoridade eclesiástica). A autoridade dos sentidos (ou seja, as percepções do mundo) também é particularmente rejeitada; o conhecimento significativo, ainda segundo Descartes, só poderia ser atingido pela razão, abstraindo-se a distração dos sentidos. Uma das mais conhecidas frases do Discurso é Je pense, donc je suis (citada frequentemente em latim, cogito ergo sum – penso, logo sou): o ato de duvidar como indubitável, e as evidências de "pensar" e "ser" ligadas. Com “razão”, ou sem razão, a barafunda segue.
Essas considerações, dentre outras, surgem após a leitura do romance A puta, de Márcia Barbieri, obra originalmente publicada em 2014 e que, agora, ganha reedição pela editora Reformatório. O texto narrado em primeira pessoa se espraia em 176 páginas, escritas de um só fôlego, em parágrafo único com ausência de marcas de diálogos (travessões). É o discurso de uma prostituta que em verdade medeia o que entendemos por monólogo interior e fluxo de consciência, embora essa distinção nem sempre pareça tão clara para o leitor. O monólogo apresenta, direta e claramente, os pensamentos e sentimentos da voz narrativa. Mas há desvios a todo momento para aprofundamentos, nos quais sente-se o esforço de captar diferentes níveis de consciência da voz narrativa que leva o leitor a deparar-se com uma prosa orgíaca na qual certas situações eróticas acentuam ainda mais a sensação de que estamos presos a um verdadeiro inferno sexual.
Empreitada dificílima de realizar, esta, sobretudo se levarmos em conta a extensão de uma narrativa que colide com temáticas que envolvem elementos complicadíssimos. O depoimento de uma mulher solteira, à margem do capitalismo e da monogamia, a viver em um mundo completamente distópico (menciona-se com frequência o acontecimento de uma guerra que dizimou a tal civilização humana, só restando sobre a face da Terra alguns vilarejos), e como se não bastasse uma enrascada dessas, a criatura é puta. É: puta assumida e juramentada. A sensação que aborda o leitor se aproxima da ideia de entropia, na qual se defende a ideia de que, quanto mais a civilização humana “evoluiu”, mais energia foi consumida até que, por fim, entramos em um colapso irreversível. Este o ponto que a narradora se encontra – na encruzilhada de uma cilada existencial.
O escritor Marcelo Ariel escreve no posfácio da obra que “o que está em questão neste romance de Márcia Barbieri é a expressão de uma singularidade a partir de uma sutilíssima desconstrução de uma forma mercantil e condicionante do feminino a partir de um fluxo de pensamento que, como num quadro cubista, cria novas proporções mais humanas justamente a partir de uma premissa muito mais aceita no Oriente segundo a qual O espírito não é nada sem o corpo.” Tanto a puta, quanto os poucos personagens da narrativa parecem focalizar o componente humano refletido em seus universos atrozes, num futuro em que a humanidade, além de perder os seus direitos sociais ou “humanos” básicos, vai deixando de adequar-se ao próprio conceito de humano (observe-se e reflita-se com muita profundidade na atuação simbólica que têm os personagens Filósofo e Poeta – grandes metáforas sobre a importância que a literatura e filosofia desempenham na vida humana).
Há uma verdadeira invasão do corpo dos indivíduos, notadamente das mulheres. A ética com relação à instituição corpórea não se restringe à vida ou à morte do corpo, mas transpassa a sua forma e modifica até mesmo sua essência ou a relação entre esses seres com outros diferentes de si. O que parece estar em jogo não é a ruína futurística do humano enquanto ser social, mas a ruína do humano enquanto conceito. Questões como consciência e corpo emergem naturalmente, pois são intrínsecas ao pensar do indivíduo enquanto ser pensante e enquanto corpo que perfomatiza (age por conta própria) e dá vazão a essa consciência.
A verdade que parece se estar à procura no discurso da puta, não depende da lógica dos acontecimentos relatados e, sim, de uma veracidade interior, subjetiva, uma verdade artística plasmada pela personalidade da puta que tanto se deixa influir por fatores extrínsecos, quanto alterna a interpretação da realidade. Ao mesmo tempo realista e super-real. Do irreal para o real, ou vice-versa, um breve instante. A voz narrativa se desespera em convulsões íntimas e tenta transmiti-las, de maneira subliminar, mediante um jogo sutil e complexo de sugestões que requer a cumplicidade do leitor, muito embora a protagonista sinta-se mais ou menos à vontade nas situações mais insólitas. Se estranha as transformações por que passou o mundo, não tarda a se adaptar ou a se resignar, como se a vida fosse governada pelo absurdo. Tal posicionamento acaba por contaminar o leitor, levando-o a aceitar a fábula como tal. Uma fábula irreversivelmente trágica.
Há passagens com corpos em decomposição agonizando de prazer e putrefação. Fazem sexo a torto e a direito e não há como evadir-se de uma tal ambiência (o texto transmite-nos a dramaticidade de um sentido de terminalidade da contingência humana, embora conclusões nem sempre claras admitam mais de uma leitura na pauta das opções que se assemelham). É a fusão do real e do supra real, em favor de uma ficção incômoda. Certas situações existenciais, de tão ilógicas e aberrantes, convocam a ficção fantástica para que melhor desnude a face encoberta pelos condicionamentos – a propósito, não há como deixar de referir o trecho em que a puta tenta fazer um aborto.
Na linha ficcional adotada pela autora percebe-se claramente a silhueta de circunstâncias conhecidas – sobretudo pelas mulheres, como a eterna exploração sexual –, e outras cujo grau de nitidez dependerá, claro está, da sensibilidade e imaginação de quem lê. Por isso, talvez, haja um jogo constante de ambiguidades e tessitura poética. Decorre disto, inevitavelmente, um convite à coautoria, partindo da premissa de que se conhecem as convenções ou concorda-se em suprimi-las. A atmosfera poética torna-se fundamental na captação da cumplicidade do leitor.
O desenvolvimento do capitalismo tardio, ou melhor, o puteiro geral de safadezas em que vamos transformando o mundo, aponta mesmo para um futuro tenebroso. O corpo humano cada vez mais avaliado como commodity, ou seja, em um objeto cujo valor se dá através de sua relação com as matrizes e forças econômicas do mercado. Corpo como alvo do sistema, que impõe a ele necessidades de melhorias – estéticas e funcionais – para que possa ser visto como um objeto de desejo por outros corpos. Seguimos esquecidíssimos do que está escrito na página 147: “...o corpo desprovido de alma se assemelha a uma boneca de borracha, a uma caixa vazia que não ressoa”.
Interessante notar que na abertura da obra, a título de epígrafe, lemos o trecho de um poema (“Animais carnívoros”), da autoria de Herberto Helder, que menciona sistematicamente o que fizemos com o que pensávamos que fosse o amor: “[...] o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.”
O amor... Finalmente vale referir que, paralelamente à crítica contundente do uso que fizemos e continuamos a fazer do corpo quanto ao sexo, Marcia Barbieri parece dar o melhor de si na tentativa de revelar mistérios da personalidade. Ao virarmos a última página quedamo-nos perplexos com a linguagem plástica e a imaginação da autora, que terminou por dar à luz obra com aquele efeito tangencial, oblíquo, que Elizabeth Bowen considerou lyrical and passionate. Algo a ver, sobretudo, com o inusitado da forma, mas entranhado também no imaginário e na suscetibilidade da escritora, do que exclusivamente com a denúncia de mazelas.
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