3 de out. de 2020

Um pedinte na pandemia

Por Ricardo Novais

Desempregado em plena pandemia do tal Covid-19, esta doença tão conhecida pelo seu horror. Ainda por cima, músico amador. A vida não estava fácil.

Resolvi ir à casa do Juca beber umas cervejas e fumar maconha. Fiquei lá a tarde inteira, nem me dei conta da hora. Onze horas da noite. Noite quase alta. Fui embora, peguei o metrô na estação da Vila Carrão e desci na Sé, para pegar o comboio de ferro da Linha Azul.

Na Liberdade, entrou um cara sem máscara no vagão. O cheiro era insuportável, maltrapilho; ele não tinha uma perna. A outra perna dele era como se também não tivesse, cheia de feridas, abertas, todas à mostra.

__ Vocês me desculpem por atrapalhar o sossego de vocês, senhores passageiros... – de cara, o perneta já foi se desculpando, todo atrapalhado, lendo um papelzinho bem sujo.

__ Sei que vocês são pais e mães de família, também eu fui igual a vocês – dizia ele. – Mas agora estou passando fome, minha gente, com três filhos pequenos para sustentar... – os lamentos logo viraram petições emergenciais. – Por favor, alguém pode me ajudar? Um real, minha gente, dez centavos, um bilhete de metrô, que seja. Deus vai dar em dobro, Ele sempre dá tudo em dobro... Um passe para... Ele... Um passe...

Passe? Só se for de macumba, pensei. Pede para aquele auxílio-emergencial que aquele filho da puta está distribuindo como esmola. Pensei essas coisas, mas não disse. Ninguém disse nada. O metrô estava vazio, as estações estavam vazias; as almas, ocas, de uma pandemia eterna. Àquela hora só os homens sem rosto têm coragem de vagar pelos trens noturnos, por vezes assombrados.

O cara sem uma das pernas, entranhas à mostra, olhou-me; mas ele também não disse nada. Eu continuei mudo como dormente de trilho, embora houvesse em mim um burburinho zombeteiro. Já os passageiros estavam cegos para a compaixão e escondiam-se pelos cantos de seus próprios corações através das telinhas de seus humilhantes aparelhos celulares.

Estação Paraíso, soou dos alto-falantes do carro férreo uma voz sexy e mecânica de mulher – nisto, leitor, ajude-me a calcular que esta mulher é misteriosa... Perdoe-me, nada tem que ver esta digressão com o conto; tornemos ao perneta.

O perneta saltou na estação Paraíso, ficou olhando para a mão direita, vazia, a esquerda segurava a trave de sustentação da muleta. E eu fiquei pensando: “Porra, estou tão ferrado como este cara... Só falta agora começar a pedir esmola também...”.

Assim que fechei o portão de minha casa, veio-me a lâmpada mágica da ideia. Corri, tranquei a porta, sentei-me, fiz uma ligação a cobrar:

__ Juca, sou eu... Como quem, cara? Ainda está brisado com o cigarrinho das montanhas? Juca, cara, tive uma ideia; ideia fantástica!

No outro dia, bem cedo, já estávamos percorrendo as estações e pedindo esmola no metrô, cada um em uma linha ferroviária da cidade. O bom de ser mendigo é que a maioria das pessoas dá até o que não tem a um necessitado; uns porque querem se redimir de algum pecado cabeludo – esse lance de perdão divino, tipo isto –, então dão esmola para a salvação, salvação própria, no caso; por outro lado, outros ajudam apenas para inflarem o próprio ego, para que todos os passageiros o julguem a criatura de alma mais caridosa da república. Ah, meu amigo leitor e minha amiga leitora, se todos fossem tão republicanos! Que país de mendigos maravilhosos nós seríamos! Mas nem tudo é um conto de felicidade no país das maravilhas onde muitos vivem abaixo da linha da miséria de uma sociedade órfã repugnante.

O ruim de ser pedinte de trem são os guardas das estações. Três dias depois que comecei no ofício da mendicância, um guarda-vidas, um negrão de uns dois metros de altura, veio correndo no meu encalço, alcançou-me logo. Tentei fugir, em disparada, desequilibrei-me e caí no vão do trilho. Vão da vida e da morte... Uma composição, passando no sentido contrário, atropelou-me. 

Que desgraça, leitor! Perdi as duas pernas na hora. Virei um pedinte de fato, mas não do metrô, que a ideia iludida tem medo do passado. Fui viver na Praça da Sé, lugar tranquilo onde posso fumar meu cigarrinho das montanhas sossegado.

O Juca? Não vejo mais. Deu tudo errado, fracassamos e não somos mais amigos. Então ele foi ganhar a vida lá no Rio de Janeiro, aquela outra cidade do pecado – e não se zangue com este autor, amigo carioca, pois pertencemos às cidades das hecatombes, como Sodoma e Gomorra. O nome do Juca agora é Tetê da Cinelândia, virou travesti ou garoto de programa – algo assim, comum no cotidiano dos Zé Pereiras, das bebedeiras e do carnaval. E o resto não importa, não faz mal; de todo modo, eu termino o conto aqui, nesta linha final de estação de trem. É quando o maquinista dá adeus ao passageiro.