30 de out. de 2020

Quando os dias são bons & outras micronarrativas

Por Adrianna Alberti

Quando os dias são bons

Abriu os olhos e encarou o teto, havia um descascado próximo à lâmpada, outros tantos na parede. Respirar era simples. Cinco adiamentos do despertador denunciava o atraso. Trocou a areia dos gatos, ração, nova água – era a única responsabilidade que ainda a mantinha em funcionamento. Alguns dias esquecia a areia. Não recordava a última vez que limpou a casa, o fogão estava oficialmente nojento. Anotou mentalmente que precisava faxinar. Esqueceu no minuto seguinte. Enfiou-se em roupas supostamente limpas, ao menos não fediam. Escovou os dentes, limpou o rosto, chamou um carro de aplicativo. Duas horas de atraso, mas finalmente no serviço. E aquela foi a maior vitória do dia.

  

As linhas escritas

Primeiro há o olhar, a troca de surpresa e a expectativa. Depois, o conhecimento, o toque superficial ao entrar em contato com fina película da água antes de mergulhar. Então, há camadas de roupas que tiro, às vezes delicadamente, às vezes como se minha existência dependesse da nudez. Não há afago, não há uma resposta satisfatória, há o inexorável momento em que o outro percebe que esta sou eu, que se encontra dentro de mim. Têm aqueles que me percebem doce, sutil, sensível, e aqueles que me rasgam me deixando partida, arranhada. Há sempre a apreensão na escrita, do papel em branco às letras. Indubitavelmente exposta, crua, na carne, na sua alma.


Ciclos viciosos

Ela sabe que não deve ser demais, aprendeu desde cedo, não pode revelar demais o corpo, não pode falar alto, não responda agressivamente. Quando cresceu, descobriu que o mundo era mais do que uma série de não poder para meninas. Então, ela não negou trabalho, não fez corpo mole, não fraquejou diante dos obstáculos, não mostrou fraqueza. Até quando pondera sabiamente, a palavra final acaba sendo sim, mais um emprego, mais um relacionamento fadado, mais uma tarefa, mais um gato, mais um compromisso, mais um sorriso, mais uma cerveja, mais um cigarro. Aprender a dizer não é uma arte em guerra, ela pensa.