15 de out. de 2020

Pela inutilidade da vida

Por Allyne Fiorentino

Você sabia que a lagartixa come mosquitos, baratas e outros bichinhos que podem transmitir doenças aos seres humanos? Sabia, também, que ela não oferece nenhum risco à nossa saúde? Pode fazer um carinho nela se quiser, nada te impede de ter uma relação mais próxima com a bichinha, a não ser que sua avó tenha dito que se tocar na lagartixa pega “cobreiro”. Sempre achei que “lagartixeiro” seria um nome mais apropriado para essa lenda.

A abelha também, a maioria delas não tem ferrão, então elas não podem fazer nada pra te machucar e são extremamente importantes no processo de polinização. Mas aposto que você logo pensou na abelha africana, aquela amarelinha, que tem um ferrão, que aliás ela adia muito para usar em você, já que é a sentença de morte pra ela. 

Ah você tem aflição se uma abelha sem ferrão pousar em você? Bom, eu sugiro que comece a treinar para perder esse medo do toque físico. Muito antes de qualquer pandemia já tínhamos perdido o hábito de tocar as pessoas, abraçá-las... olhar nos olhos então, nem se fala... quando foi a última vez que você olhou verdadeiramente e sem receio nos olhos de alguém por mais de 5 segundos? Acho que o que nos falta são os toques físicos e os olhares profundos, com bichos selvagem e com bicho humano.

Os sapos também entram na jogada, aqueles sapos verruguentos que encontramos na fazenda também comem moscas, mosquitos e bichinhos que nos fariam mal. Então, apesar de você achá-los feios e nojentos (o que bem pode ser recíproco do sapo em relação a você), não há motivos para matá-los e nem ter medo deles. “Mas o xixi do sapo, se espirrar no olho, cega”. E você já conheceu alguém com cegueira de sapo?

Ao continuar essa amarga saga sociológica a que nos obrigamos todos os dias nas redes sociais, passei inúmeras vezes por postagens que tinham mais ou menos o mesmo intuito que esses primeiros parágrafos, entretanto com menos informação e uma persuasão mais direta: “não matem esses animais” – eles dizem – e prevendo a nossa miséria como seres humanos incapazes de saber o valor da vida, eles completam: “porque eles são úteis para você!”.

Com essa barganha pela vida eu finalmente entendo que tipo de ser humano nos tornamos ao longo do tempo. Talvez não esteja claro para o leitor ainda, mas imagine-se em um filme de guerra ao estilo hollywood, você com a arma na mão matando seus inimigos, sentindo-se o próprio salvador da pátria por dizimar seus semelhantes, e, de repente, surge uma criança implorando clemência. Você olha para ela e diz: se eu te deixar viver, o que eu ganho com isso? Eis a aplicação da utilidade imediata da vida.

Não me espanta ter saído essa semana aquele comentário de um popular dizendo: “Mas pra que serve onça?” “Se estão morrendo no Pantanal, que falta nos farão?”. Do ponto de vista da onça, ela poderia pensar o mesmo sobre nós. A diferença é que ela acharia bons motivos para que fôssemos extintos, já que somos uma espécie extremamente violenta, cruel e destruidora.

Mas nós temos os cães e os gatos, que substituem nossa incapacidade de amar outros seres humanos de forma sincera. Quanto mais nos afundamos na crença da desvalorização das vidas, o que nos levará a uma guerra civil em poucos anos, mais acreditamos que somos capazes de amar apenas os animais domésticos. Não qualquer animal: só os domesticados, adestrados, fofos, engraçadinhos, carentes, dóceis, submissos... Há leis que os protegem devido a sua grande “utilidade” para os seres humanos. Agora é fácil entender porque a lei que protege os animais feios, agressivos, selvagens, peçonhentos, venenosos, livres e “inúteis” a nós não é levada a sério apesar de existir.

Foto: Sebastião Salgado

Sentindo essa impotência tão grande diante da matança de animais e de flora, nós queremos desesperadamente nos enganar, mas sabemos que essa “lógica da utilidade” é aplicada a tudo, inclusive a vidas humanas. Se um ser humano é considerado sem utilidade imediata para o sistema que criamos para nos oprimir, sem nenhum pudor chega-se à conclusão de que ele não deveria existir.

Tentamos desesperadamente não pensar muito nisso, trabalhamos o bastante para que não sejamos considerados inúteis e, portanto, descartáveis para a sociedade, mas o que escondemos bem no fundo da nossa consciência é a verdade que todos sabemos: somos todos inúteis.

E temos medo de assumir que essa inutilidade da vida é o que a torna verdadeiramente importante. É impossível colocar um preço em uma coisa inútil, eis o seu verdadeiro e mais sólido valor.    

Apesar de tudo, pelas redes eu conheci um homem que salvou uma lagartixa. Em sua postagem, ele contava que ela caiu na cola e as patinhas ficaram grudadas. Com um algodão e azeite de oliva, ele pacientemente limpou cada minúscula patinha. Ela não tinha nenhuma utilidade pra ele.

Um dia, quem sabe, nossas mãos cheias de sangue poderão ser limpas em azeite virgem e seguiremos vivendo inutilmente... verdadeiramente...