Por Allyne Fiorentino
Você
sabia que a lagartixa come mosquitos, baratas e outros bichinhos que podem
transmitir doenças aos seres humanos? Sabia, também, que ela não oferece nenhum
risco à nossa saúde? Pode fazer um carinho nela se quiser, nada te impede de
ter uma relação mais próxima com a bichinha, a não ser que sua avó tenha dito
que se tocar na lagartixa pega “cobreiro”. Sempre achei que “lagartixeiro”
seria um nome mais apropriado para essa lenda.
A abelha também, a maioria delas não tem ferrão, então elas não podem fazer nada pra te machucar e são extremamente importantes no processo de polinização. Mas aposto que você logo pensou na abelha africana, aquela amarelinha, que tem um ferrão, que aliás ela adia muito para usar em você, já que é a sentença de morte pra ela.
Ah você tem aflição se uma abelha sem ferrão pousar em você? Bom, eu sugiro que comece a treinar para perder esse medo do toque físico. Muito antes de qualquer pandemia já tínhamos perdido o hábito de tocar as pessoas, abraçá-las... olhar nos olhos então, nem se fala... quando foi a última vez que você olhou verdadeiramente e sem receio nos olhos de alguém por mais de 5 segundos? Acho que o que nos falta são os toques físicos e os olhares profundos, com bichos selvagem e com bicho humano.
Os
sapos também entram na jogada, aqueles sapos verruguentos que encontramos na
fazenda também comem moscas, mosquitos e bichinhos que nos fariam mal. Então,
apesar de você achá-los feios e nojentos (o que bem pode ser recíproco do sapo
em relação a você), não há motivos para matá-los e nem ter medo deles. “Mas o
xixi do sapo, se espirrar no olho, cega”. E você já conheceu alguém com
cegueira de sapo?
Ao
continuar essa amarga saga sociológica a que nos obrigamos todos os dias nas
redes sociais, passei inúmeras vezes por postagens que tinham mais ou menos o
mesmo intuito que esses primeiros parágrafos, entretanto com menos informação e
uma persuasão mais direta: “não matem esses animais” – eles dizem – e prevendo
a nossa miséria como seres humanos incapazes de saber o valor da vida, eles
completam: “porque eles são úteis para você!”.
Com
essa barganha pela vida eu finalmente entendo que tipo de ser humano nos
tornamos ao longo do tempo. Talvez não esteja claro para o leitor ainda, mas
imagine-se em um filme de guerra ao estilo hollywood, você com a arma na mão
matando seus inimigos, sentindo-se o próprio salvador da pátria por dizimar
seus semelhantes, e, de repente, surge uma criança implorando clemência. Você
olha para ela e diz: se eu te deixar viver, o que eu ganho com isso? Eis a
aplicação da utilidade imediata da vida.
Não
me espanta ter saído essa semana aquele comentário de um popular dizendo: “Mas
pra que serve onça?” “Se estão morrendo no Pantanal, que falta nos farão?”. Do
ponto de vista da onça, ela poderia pensar o mesmo sobre nós. A diferença é que
ela acharia bons motivos para que fôssemos extintos, já que somos uma espécie
extremamente violenta, cruel e destruidora.
Mas
nós temos os cães e os gatos, que substituem nossa incapacidade de amar outros
seres humanos de forma sincera. Quanto mais nos afundamos na crença da
desvalorização das vidas, o que nos levará a uma guerra civil em poucos anos,
mais acreditamos que somos capazes de amar apenas os animais domésticos. Não
qualquer animal: só os domesticados, adestrados, fofos, engraçadinhos, carentes,
dóceis, submissos... Há leis que os protegem devido a sua grande “utilidade”
para os seres humanos. Agora é fácil entender porque a lei que protege os
animais feios, agressivos, selvagens, peçonhentos, venenosos, livres e “inúteis”
a nós não é levada a sério apesar de existir.
Sentindo
essa impotência tão grande diante da matança de animais e de flora, nós
queremos desesperadamente nos enganar, mas sabemos que essa “lógica da
utilidade” é aplicada a tudo, inclusive a vidas humanas. Se um ser humano é
considerado sem utilidade imediata para o sistema que criamos para nos oprimir,
sem nenhum pudor chega-se à conclusão de que ele não deveria existir.
Tentamos
desesperadamente não pensar muito nisso, trabalhamos o bastante para que não
sejamos considerados inúteis e, portanto, descartáveis para a sociedade, mas o
que escondemos bem no fundo da nossa consciência é a verdade que todos sabemos:
somos todos inúteis.
E
temos medo de assumir que essa inutilidade da vida é o que a torna
verdadeiramente importante. É impossível colocar um preço em uma coisa inútil,
eis o seu verdadeiro e mais sólido valor.
Apesar
de tudo, pelas redes eu conheci um homem que salvou uma lagartixa. Em sua
postagem, ele contava que ela caiu na cola e as patinhas ficaram grudadas. Com
um algodão e azeite de oliva, ele pacientemente limpou cada minúscula patinha. Ela
não tinha nenhuma utilidade pra ele.
Um dia, quem sabe, nossas mãos cheias de sangue poderão ser limpas em azeite virgem e seguiremos vivendo inutilmente... verdadeiramente...