Por Maurício Lahan Junior
Eu poderia conquistar a porra do mundo todo.
Tenho certeza que conseguiria. Sou capaz e competente para isso e vejo tanta
gente mediana ou sem... Como posso dizer... Sem brilho que está por aí cheia de
dinheiro no bolso.
É! Eu poderia ser um cara cheio de dinheiro no
bolso, mas eu não ligo para isso. De verdade. Não quero ser o cara cheio do
dinheiro. Eu quero ter o mínimo para viver bem. Sei lá, uns quinze mil mangos
por mês tava ótimo. E eu sei que eu posso conseguir isso.
Basta eu ter uma grande ideia e já era. Vai
ser de boa. Se esses caras chegaram até lá, por que é que eu não posso? Eles não
têm nada na cabeça. Só falam futilidades, nunca, sequer, tocaram num livro e os
poucos que tocaram foram aqueles bestsellers de autoajuda. Fico puto com esses filhos da puta de alma
vazia compartilhando suas frases de efeito no Story do WhatsApp.
"Vá aonde ninguém foi e mostre a eles
que, enquanto os outros se divertem, você estava vencendo mais uma
batalha" - Alcateia
Alcateia de cu é rola. Tô cercado de gente
assim. Uns caras que tiveram oportunidades e outros que estão na fila esperando
essa chance. Todos lendo autoajuda. Autoajuda é um câncer que se espalhou mais
rápido que a dengue. Eles dizem: Seja Foda, Ganhe Dinheiro, Pense como um
Milionário, Ligue o Foda-se, Acorde seu Gigante, Seja mais do que os outros
acreditam… E assim vai. Um montante de tutoriais dizendo que você deve ser
feliz, proativo, firme, dedicado, dinâmico, ousado, disciplinado, sonhador e
etc, etc, etc.
Nem vou entrar no mérito de falar sobre
igreja. Se for entrar nesse tema… Ahhh... Não. Eu prometi que não ia falar da
Igreja.
Kafka escrevia sobre a solidão, depressão,
frustrações e tudo o que for contrário aos temas que citei anteriormente e sabe
por que? Ele falava sobre a realidade. Isso, vou soletrar: RE-A-LI-DA-DE.
Mas de onde eu tirei Kafka? Como assim, Roberto? Eu estou sendo muito rápido para você. Foda-se. Pega o pó de café ali
no armário, por favor. A questão é que Kafka falava sobre a verdade que era a
vida. O que ela ainda é. O cara tinha sentimentos, sabe? Verdadeiros, não esses
que a gente se força a demonstrar dia após dia. E ele sentia isso. E eu sei que
você sente também.
Existe alguém ou alguma coisa lá fora que está
fodendo sua vida. É algo que está além da sua compreensão. Algo que você não
sabe quem ou o que é, mas sabe que existe um sistema, um mecanismo, um demônio,
uma força universal da natureza que tá te fodendo.
É o acordar cedo todos os dias, se melecar no suor do abafado trem misturando oxigênio e bactérias divididas entre pessoas que você nunca vai saber o nome. Aguentar o ar condicionado, as dores da bursite e da tendinite que você desenvolveu em cinco anos trabalhando nove horas por dia na frente de um computador, tendo de suportar o gosto escroto do café da máquina de expresso. Eu mataria, sem pensar duas vezes, o cara que criou a máquina de café expresso e dou graças a Deus que o pessoal aqui do andar decidiu comprar uma cafeteira elétrica.
Leva
isso para sua vida, Roberto, as coisas mais saborosas da vida devem ser feitas
lentamente, para aproveitar o cheiro, o movimento e a textura de tudo. Tudo que
tiver expresso no nome não presta, é o pular de etapas, o avançar sem preparo,
queimar a largada.
É algo com sabor falso. Assim como livros de autoajuda. Agora enche isso aqui com água.
Aonde
eu estava na nossa conversa?
Sim, verdade. Kafka.
A literatura de Kafka é como café coado sem
açúcar. Como assim não faz sentido?
Presta atenção. A verdade é ruim de engolir. É
amarga e fode seu estômago. Mas é a verdade e você tem que aceitá-la.
Você precisa enxergar que a probabilidade de
tudo acabar em merda é grande. E não adianta o seus longos anos cumprindo
horários todos os dias e fazendo o melhor para o crescimento da empresa. No fim
você vai levar três tapinhas nas costas, e aí, meu amigo, o Kafka vai estar lá
rindo da sua cara. Sabe por quê? Porque os livros de autoajuda não te
prepararam para isso. Eles dizem que você é individualmente especial mas o
mundo te mostra que, na real, tu é só um código de barras. Tu é estática,
camarada. Nada mais, nada menos.
Por isso, logo mais vou sair desse emprego. Eu
vou mudar meu rumo, ser um filho da puta como todos os outros. Eu só preciso me
organizar, pagar minhas dívidas, guardar uma grana e aí eu monto meu negócio.
Ou, sei lá, começo a fazer vídeo pro Youtube infantil. Eu posso ser autônomo e
dono do meu nariz. Vou ser vendedor de alguma coisa ou abrir uma adega.
Por que eu não fiz isso antes nesses anos todos?
Cara, você não está ouvindo o que eu digo? Existe algo lá fora que a gente não sabe como funciona. Talvez sejam os bancos. Sempre são os bancos. O que importa é que alguém quer me foder! E tá conseguindo. Tá conseguindo com oitenta por cento das pessoas ou até mais do que isso.
É o medo. Medo de não conseguir pagar as
contas no fim do mês, de sua geladeira queimar e você não ter crédito pra comprar
outra. Já ouviu falar do SERASA? Se seu nome estiver lá tu não arruma emprego, parça, seu nome fica sujo na praça. E se eu cair doente? Quem é que banca as
coisas? Hospital público é o mesmo que ter um pé na cova.
Qual a vida que pode oferecer para sua mulher,
seus filhos ou a sua mãe, sem o maldito dinheiro? É por isso que eu vou ganhar
muito quando eu sair daqui, pra todo mundo ter um pouco de paz.
Você está em paz? Quer dizer que você é feliz.
Você tá lendo essas merdas de autoajuda, né não? Então quer dizer que esse ano
vai aparecer muitas oportunidades de crescimento na empresa. É sério isso?
Depois de contratarem aquele "zé"
do Alberto como supervisor ao invés de promoverem a gente? Roberto, eu não sei
por que eu ainda perco meu tempo tentando te explicar as coisas. Pega os copos
descartáveis aí, vai. Você vai tomar com açúcar? O meu não precisa, valeu.
Depois tem que limpar isso aí. E o que tem a ver isso? Roberto, você é um cuzão. Não é porque tem faxineira na empresa que
você precisa deixar a porra da pia suja, cara. Então ela tem emprego só por que
tu faz sujeira? Cara, quando tu morrer vai descer pro inferno de tobogã. Cê vai, sem fazer escalada, caindo
direto no colo do capeta. Sabe, eu queria viver cuidando de animais. É, não dá
risada, mano. Eu tô falando sério. Eu queria trabalhar num zoológico, tá ligado?
Ou sei lá, num daqueles aquários enormes que existem nos Estados Unidos. Ser um
veterinário de sucesso. Daqueles dos programas de TV que ficam cuidando de
leões machucados na savana africana ou libertando golfinhos presos ilegalmente.
Coisa grande, tá ligado?
Eu sei que precisa estudar pra isso. Eu tentei
mas é caro. Deve ser mais de mil e quinhentos reais por mês pra fazer medicina
veterinária, então eu fiz biologia. O quê? Você não acredita? Eu tenho um
diploma, seu merda. Pro seu governo eu sou estudado.
Não segui a carreira por que não existe
carreira. Ou sei lá. Eu precisava de dinheiro, sabe? E um diploma de Biologia
não me leva a muitos lugares. Mas pelo menos eu tenho conteúdo na cabeça. Eu
sei como funcionam as células do seu corpo e já fui em vários eventos de
intelectuais!
Já assisti muita palestra. Tenho um monte de
livros em casa e nenhum deles é de autoajuda, falou?! Eu leio coisa que presta.
Como assim? De forma nenhuma eu sou igual a
essa galera. Não que eu seja melhor. Mas um diálogo no almoço se resume a três
assuntos: falar mal de algum funcionário, falar mal do nosso chefe ou falar mal
da empresa. Às vezes quando tentam entrar em política ou sai briga ou nos
primeiros 30 segundos alguém diz que "política e religião não se discute,
cada um tem sua opinião!".
Que porra é essa de cada um tem sua opinião?
Quem inventou isso? Precisa ter base e lógica pra ter opinião. Claro que
ninguém é cientista político aqui, mas tem que fazer lógica o argumento pelo
menos, né? Tem que ter uma base pelo menos. Não basta ter fé no que se
acredita, isso é ilusão.
O quê? Eu sei que fé é justamente acreditar em
algo sem provas. Mas política não é religião. E falando nisso. Não. Eu disse
que não ia falar da igreja. Então não vou falar de religião na política. A
questão em si, é que tudo deveria ser discutível e aqui todo mundo parece usar
cabresto. E esse é outro motivo pelo qual eu vou sair daqui.
Às
vezes eu fico imaginando se não entraria um cara louco da cabeça nesse
escritório, com uma arma na mão quebrando todos esses computadores e mesas.
Chutando os quadros e fotos deprimentes que colocamos em nossos lugares para
lembrarmos que aqui não é a nossa casa e que estas pessoas não são nossa
família.
Ver um
doido varrido qualquer quebrar aquela merda de máquina de café expresso.
Imagina
se ele coloca a arma na minha cabeça e me obriga a ir atrás daquilo que eu
quero? Me força a largar isso aqui e ir me especializar na minha área. Eu
poderia chegar em casa e dizer a todo mundo que se eu não fizesse o que ele
manda eu estaria morto e aí todo mundo ia ter que se virar para se manter ou
iriam pelo menos aguentar viver com
menos.
É isso!
O quê? Bom... Na verdade eu acho que sim. Se
acaso eu tomasse a decisão de ser biólogo ninguém iria falar nada lá em casa.
Mas não sei se é o melhor, entende? Todo mundo ia dizer "sim faz o que é
melhor para você" mas isso não significa que é sincero. Porque tem algo
ou alguém fodendo eles também, forçando todos a me apoiarem, essa é a regra da
sociedade! Você tem que dizer para todas as pessoas que tudo vai dar certo e
que vai acabar bem.
Mas o Kafka nunca iria me dizer isso.
A gente foi criado aprendendo que nosso
destino é trabalhar para os outros, fazer pelos outros. Acreditar nos outros.
Mas no fim isso é apenas um grito desesperado no qual suplicamos para o mundo
nos apoiar. Para que alguém possa acreditar em nós quando não o fazemos. Mesmo
assim, esse ano eu vou mudar as coisas. Vou juntar uma grana, pagar minhas
dívidas e ser dono de mim mesmo.
Vou
embora desse lugar, começar do zero e a vida será diferente. Por que vai ser
diferente?
Por que eu serei o maior filho da puta desse
mundo e não vou morrer como um cão.
Maurício Lahan é historiador e aprendeu a ver na literatura rastros daquilo que é o ser humano e seu tempo. Tem por preferência textos que apresentem a realidade nua e visceral, sem floreios, guardando para si o desejo de, um dia, publicar algum livro de contos com base no cotidiano violento em que vivemos. “Há um limite para o que pode ser escrito por um sujeito que vasculha a geladeira na cozinha às três horas da manhã enquanto o mundo dorme.
E é esse o meu caso” – Haruki Murakami.