27 de jul. de 2020

A arte de escrever narrativas #2

Módulo 2: Não subestime a importância da originalidade

 

Por Rogers Silva


Pense em cinco autores originais... Guimarães Rosa? Sim. Machado de Assis? Também. Edgar Allan Poe? Com certeza. José Saramago. Claro! Clarice Lispector? Siim. Cinco autores diferentes de locais e épocas diferentes: três brasileiros (um deles de meados do século XIX); um estadunidense também do meio do século XIX; um português, cuja carreira decolou a partir da década de 1980, século XX. Todos eles praticam o mesmo tipo de originalidade? De forma alguma. Cada um foi original à sua maneira em seu tempo. Tomemos dois deles como exemplos.

 

Machado de Assis é um autor brasileiro do século XIX, e isso diz bastante sobre a sua originalidade. Quais autores eram contemporâneos de Machado? José de Alencar, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Aluísio de Azevedo, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, entre outros. Todos são, sem exceção, grandes escritores. Nenhum é, porém, tão original quanto Machado (Álvares de Azevedo, na minha opinião, possui uma verve extremamente original que, talvez, não tenha tido tempo de explorar, por ter morrido muito jovem).

 

Quais desses autores são tão ironicamente sutis como Machado? Qual deles escreveu narrativas tão fragmentárias, com capítulos curtíssimos, em uma época de grandes calhamaços, sobretudo entre os estrangeiros, com capítulos bem longos? Qual desses autores foi tão mordaz com seus próprios personagens? Que autor, além de Machado, dialogava e ironizava seus leitores e leitoras? Que autor retratou tão bem sua localidade (a capital do Brasil à época), seu povo, hábitos e costumes sem, no entanto, parecer um retratista neutro? Sem desmerecer a grandeza dos outros autores citados, mas nenhum, caro leitor – nenhum deles foi tão original quanto Machado. O estilo de Machado é inconfundível. Os estilos de Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, por exemplo, às vezes se confundem. Ou seja, se o leitor tiver acesso a um poema de cada um, se não for um especialista, raramente conseguirá identificá-lo ao seu autor.

 

Ah, mas Machado de Assis viveu numa época e num país medíocres, no seio de uma sociedade intelectualmente medíocre – diria um leitor mais radical. Há controvérsias, embora exista quem assim pense. Como outro exemplo, peguemos José Saramago, um escritor nascido em 1922, em Portugal, e morto em 2010. Quanta literatura não foi criada antes dele! Quantos gênios não surgiram antes dele (inclusive em Portugal, país com uma bagagem histórica e cultural muito maior do que o Brasil)! Mas – pasmem – Saramago conseguiu, mesmo assim, ser um escritor originalíssimo. Dois exemplos de seu estilo e de sua originalidade:


a)     Escrevia quase todas as suas obras em forma de alegorias e parábolas. Ou seja, ele partia de uma premissa às vezes comum (de repente, quase todos os habitantes de uma cidade ficam cegos) e, por meio de uma trama bem construída, ao final transmitia uma mensagem indireta (só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são). Saramago, em suas obras, criava analogias a fim de representar pensamentos e ideias de forma figurada. Uma coisa sempre queria dizer muito mais do que ela aparentemente dizia.


b)    Sua linguagem: Saramago, em geral, escrevia frases e períodos longos, com bastante léxico da linguagem oral e uma pontuação pouco convencional. Evitava os pontos finais e os substituía por vírgulas. Aboliu o travessão (os diálogos ficam inseridos entre a narração) e os pontos de exclamação e interrogação (que podem ser percebidos pelo próprio contexto ou pela indicação do narrador como, por exemplo, em “João perguntou”). A letra inicial maiúscula da palavra indica a fala de um personagem, e não o travessão ou aspas, como é mais comum.

Outros recursos e características que corroboram seu estilo original são: aproveitamento de provérbios populares; ironia; sarcasmo; trocadilhos; arcaísmos, etc., o que – por si só – não seriam suficientes para fazer dele um autor diferente de qualquer outro, uma vez que vários outros, antes, já haviam utilizado esses recursos, em conjunto ou separadamente (vide Voltaire, ainda no século XVIII).

 

Ah, mas originalidade é algo inato: ou se é ou não se é, afirmaria algum leitor. Há controvérsias. Leia o que Edgar Allan Poe escreveu em seu A filosofia da composição: “A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Concordo com Poe. Saramago não encontrou seu estilo em seu primeiro livro (que, aliás, ele renegou) nem, muito menos, no segundo. Ele o obteve com muitos estudos, leituras, experiências e escolhas. Optou por uma linguagem fluída, por exemplo, e para isso abriu mão de vários recursos comumente utilizados por outros escritores (como o travessão, o ponto de interrogação, o ponto de exclamação, os dois pontos, o ponto-e-vírgula, etc.).

 

Aqui chegamos à questão a que toda discussão sobre literatura chega: literatura é a arte de usar as palavras. Sendo assim, os recursos linguísticos são de fundamental importância para a construção da originalidade. Eis um exemplo:

Fonte: p. 23 do livro Manicômio/Rogers Silva, Uberlândia: Composer, 2012.


Quero destacar, neste trecho do conto Clarissa, de minha autoria, dois pontos:

1) a escolha por colocar as falas em itálico (e não da forma tradicional, que é com travessão e em outra linha) – Mas que presentes? Em todo o conto (de umas três laudas, aliás) os diálogos surgem assim: em itálico e no meio da narração. É uma forma de dar mais fluidez à história.

2) a escolha por utilizar uma linguagem não só coloquial, como “gramatical e ortograficamente errada” (de acordo com a língua culta), uma vez que se trata de uma criança contando a sua história e da sua amiga Clarissa: “trabaiá”, “estudá”, “braba”, “facin”, “os dia”, “árvre”, etc. Uma criança não conversa como um adulto. Uma criança do interior não conversa como uma criança dos grandes centros urbanos. Uma criança do interior de Minas da década de 1990 não conversa como uma criança do interior de Minas de 2020.


Percebe, leitor, que às vezes a própria história a ser contada exige uma linguagem assim e não assada? Ah, mas em literatura pode usar uma linguagem como essa do conto Clarissa, “toda meia estranha”? Claro! A literatura é o espaço supremo da potencialidade da linguagem. Tudo é possível se o objetivo do autor, com aquele texto, assim o exigir. Quer outro exemplo?


“Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?”

Fonte: p. 159 do livro Todos os contos/Clarice Lispector, Rio de Janeiro: Rocco, 2016.


Um leitor mais gramaticista tenderia a “consertar” o trecho do conto A imitação da rosa, de Clarice Lispector:


“Antes que Armando voltasse do trabalho, a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia. Então, sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?”


Gramaticalmente mais aceito, literariamente mais pobre. Como assim? Releia o trecho original, escrito por Clarice Lispector. Que impressão passa? Afobação, pressa, ansiedade. Releia o trecho “revisado”. Passa a mesma impressão? Não. Porque a pontuação comprometeu o efeito desejado[1]. Ou seja, para o objetivo de passar a impressão de uma personagem afobada, ansiosa pela chegada do marido, a falta da pontuação tradicional (com a ajuda do polissíndeto[2]) surtiu muito mais efeito.


Agora, tendo em vista ainda a mesma autora, multiplique a utilização desses e de outros recursos por centenas, milhares de vezes. Qual o resultado? O estilo inconfundível de Clarice. E o estilo (aquilo que diferencia um de outro autor) é o que faz um escritor original. Ou não.



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[2] O polissíndeto é uma figura de linguagem que se caracteriza pela repetição de um determinado conectivo entre palavras, expressões ou mesmo orações. Em geral, o conectivo mais utilizado nesse tipo de figura é o “e”.


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