Por Sérgio Tavares
"o pai não aguenta por muito tempo e, meio ruminante, arrasta-se pelos degraus que levam ao estrado, dispondo-se na única posição que o corpo permite. ora em vez, a mãe estica a mão e lhe afaga a cabeça. depois, vai à cozinha e distraidamente retorna com quatro copos de limonada. tal como ela, sinto falta da Ofélia. miúda no degrau da escada para o estrado, pintando seus livrinhos com cera ou cantando cirandas que afastavam os sintomas que trazem as horas mortas.
a Ofélia
poderia ajudar. tenho certeza, todos temos. visito um quadro e estamos nos
fundos da casa, repetindo o ritual hereditário, porém há um sentimento
indefinido, uma ausência que, embora abstraída, vai se acumulando e agrava o
cansaço. não podemos nos reconstruir para suportar o peso que se alastra, se
falta essa unidade, um posto danificado. aprendi que, contra a urgência que
irrompe no alvorecer, é vital que todos se ocupem do papel cabível na família.
a mãe sentada na cadeira fiando, o pai amontoando o desaterro, a Esterzinha
como a Ofélia antes e o avô soprando o cachimbo.
somos uma
estrutura, a casa que se renova eternamente com tantos cômodos e distinções,
mas sustentada pelo alicerce original. precisamos da Ofélia: das suas músicas e
do seu comportamento encenado. a cidade muda ao anúncio da partida. os dias vão
incorporando horas noturnas e um cinza vai borrando os telhados das casas,
provocando um entristecimento gradual que vem do incontrolável abandono das
coisas. para provar resistência, é preciso atuar contra o tempo. muitos cantam.
por entre as fileiras de sebes, ouvem-se coros que entoam melopeias marcadas
pela marcha das pás. hnos patriarcais, às vezes o compasso de um instrumento de
corda. alguns urram e, quando encontram uma mandrágora ou uma raiz tuberculosa,
comemoram com assovios e euforia infantil.
não posso
negar a influência que a Ofélia e suas músicas teriam no preparo da partida. o
incompleto nos rodeia de inquietações e põe em dúvida tradições e posições
modulares. trago na memória a sensação de absoluta segurança que reinava sobre
as horas mortas com o pai comandando o empenho coletivo de abrir os buracos.
agora, desfalcados, permitimos um esgotamento que não está no cansaço e sim em
sua previsão. sinto a instabilidade pela casa, como portas e janelas que já não
trancam, e a obrigação de provar ao pai e à mãe (a mim!) que, embora passemos
por um processo de transição, tenho capacidade para permitir o retorno e a
continuação da nossa ordem.
à noite, o
pai rasteja até o quintal e vem lastrando a barriga na terra úmida para
derramar, da borda do buraco, o cobre da lamparina sobre o trabalho embotado.
fica até o querosene acabar ou a aurora o tornar imprestável, removendo o breu
do meu corpo enquanto cavo o solo e jogo seu conteúdo sobre minha cabeça. não
sei, ao certo, se é um gesto de confiança ou para afastar o fantasma da
incerteza.
quando
comecei a cavar, não me atentei ao efeito que a decisão da Ofélia, mesmo ainda
recente, já infundia, em pequenos gestos e atitudes menores, no preparo da
partida. a reboque do entusiasmo que impele as famílias, fundi o braço ao cabo
da enxada e abri a terra, ainda úmida de sereno, cego e afoito, desatinado pelo
esgotamento do tempo e a degradação do corpo. cavei descomedidamente, sem plano
ou pausa, condicionando meus braços a um automatismo febril, por horas insones.
sob o
mormaço viscoso do sol acinzentado ou o orvalho sujo da noite, reproduzia
movimentos angulares, adotando uma simetria entre os golpes para talhar um
círculo que calculei ser suficiente para abrigar a todos e os pertences mais
íntimos. lascava a abertura com o gume, depois usava as costas do metal para
socar a argamassa de terra e umidade num grosseiro acabamento. quando já me
encontrava afundado na altura dos ombros, senti os primeiros sintomas do
cansaço.
não era um
embrulhamento dolorido e compresso, oriundo de um trabalho árduo, mas algo
impróprio, uma sensação de peso que ia pendendo os braços e deixando no corpo
uma falta de vontade. lembro que a descoberta me estancou e a parada inesperada
descolou o cabo das minhas mãos, tombando lentamente como uma parte seca que se
desprendia de mim. percebi que sangrava há algum tempo. furiosamente,
atacaram-me as necessidades fisiológicas, a ingestão e o desapego a minha
saúde. minha visão foi ficando turva, perdia a firmeza das pernas, respirando o
ar insalubre, acre de queimar os pulmões, claustrofóbico, tinha de sair dali.
cambaleei até a escadinha de madeira e, quando emergi para as costas da casa,
vi a mãe, fiando uma figura concêntrica, e os demais que contavam com a minha
resistência."
Sérgio
Tavares nasceu
em 1978. É jornalista e escritor, autor de "Queda da Própria Altura"
(Confraria do Vento/2012) e "Cavala" (Record/2010), vencedor do
Prêmio Sesc Nacional de Literatura - Categoria Contos. Também foi premiado no
Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp-RJ/2005) e tem
textos publicados, entre outros, nas revistas Cult e Arte e Letra: Estórias #
M, e no jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná.