Por Munique Duarte
Bateu
a porta e bateu em retirada feito cão raivoso. Ao sair sentiu um nó na traqueia
de quem não via o mundo lá fora há muito tempo. A claridade o tonteou. Fora do
prumo. Caminhando e varrendo a calçada irregular com as solas dos pés. O mundo
do lado de fora é uma gaiola gigante, cheia de gente que acha estar livre e
feliz. Ele esqueceu os óculos, mas as pessoas eram transeuntes vivas,
apressadas, coloridas, rarefeitas, falantes. Não falava há dias. Ouvia muito e
não falava. Não falava porque ninguém o entendia. Foi ficando derretido aos
poucos, como neve no anúncio da primavera. Murcho. Escutando. Até que naquele
dia ensolarado e quente de quinta-feira de manhã resolveu dar um basta. Calado,
bateu a porta. Mudo, saiu percorrendo a calçada irregular com nó de gravata
desajustada na goela. Ele não era culpado. Era simples de ideias, mas ninguém
as ouvia. E quando resolviam ouvir o pobre enforcado nas angústias, ninguém
compreendia. O mundo é uma gaiola imensa cheirando a gás carbônico. Entre
tantos casos e descasos, e desencontros, preferiu bater a porta e ir embora.
Sem malas e com uns trocados no bolso. Caminhou muito. Doía a sola dos pés.
Encontrou um velho amigo. Encarou a cara do conhecido como se tudo estivesse
normal. Ouviu todas as suas ladainhas. Porque amigos são contadores de belas
ladainhas melosas. Havia três meses que não o via. Porque andava trancado muito
em casa, na gaiola pequena. Foi perguntado pela ausência. Respondeu que largou
o trabalho e que agora se dedicava a olhar o horizonte e a escrever artigos que
talvez algum dia alguma revista pudesse aceitar. Mentia. A vida seria mesmo só
observação dali em diante.
Mas sobre escrever, era tudo mentira. Conversar com o amigo
era como se o nó da traqueia piorasse. Fingiu querer atravessar a rua.
Antecipou o até logo, com desejo de até nunca.
Atravessou no vermelho do semáforo, e a vontade de desbravar o mundo passava a
ganhar uma cor amarelada, sem o fulgor do bater da porta. Nunca mais veria os
lábios em formato de coração do primeiro amor de sua vida que se tornara sua
esposa. Talvez melhor assim. Talvez não. A família dela lhe dava náuseas.
Pessoas que falam muito, sem direção. Ela era linda, com cabelos cor de laranja
e lábios vermelhos, feito um coração. Cara de russa. Uma boneca estrangeira.
Ele, um eterno estrangeiro na gaiola. Ela, pássaro raro. Devia estar chorando
pela batida na porta. Preso na pequena gaiola. Preso na grande gaiola. Atravessou
a rua em sentido contrário. Pensou em fazer a mentira da escrita para a revista
se tornar uma verdade. Depois pensou em desistir. A gaiola grande é complicada e cheira
forte a gás carbônico. Muito ruído. Sem possibilidade de compreensão. Estava
calado nos últimos dias. Estava sufocado pela gravata imaginária do adversário.
Caminhava rápido em sentido contrário. Imaginava outros mundos, outros amores,
outras gaiolas. Atravessava o corredor do prédio. Lembrou do passado. Sempre
calado, ninguém o compreendia. Queria olhar para sempre o horizonte pela fresta
da gaiola. Impossível. Terminou o corredor. Estava diante da porta batida.
Titubeou na campainha. Lábios de coração atenderam. Os olhos da boneca russa
estavam secos. Os dele verdadeiramente cansados. A gaiola grande oferece muita
coisa para ser vista. Ele deu o primeiro passo para dentro da gaiola pequena.
Sentiu-se o mesmo. As angústias são as mesmas. Tomou a boneca de cabelos cor de
laranja nos braços. Quando os lábios se encontraram, fulgor. A gaiola pequena
se tornou gaiola grande. Voaram na imaginação. Estavam a sós. A salvo. Mais
tarde chegariam os outros, cheirando a gás carbônico. Quem sabe, bater a porta
outra vez. Entre o acaso e o descaso, ele seria então observador de horizontes.
Amava sua boneca russa bailando entre ocaso e estrelas.
Munique
Duarte nasceu e vive em Santos
Dumont-MG. É jornalista responsável pelas publicações de quatro sindicatos de
Juiz de Fora-MG. Bloga em Textos Imperdoáveis
Participa da obra Escritos de Amor, lançada pela Casa do Novo Autor
Editora, e Poesia e Prosa no Rio de Janeiro, pela Taba Cultural. Já
colaborou n'O BULE, Sobrecapa Literal, Escrita Criativa (Portugal), Revista
Diversos Afins, Jornal Opção, Jornal Relevo, Revista Elis, Revista Pâncreas e
Revista O Viés. Admiradora de Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles e Ferreira
Gullar.