Por Daniel Lopes
Estava
velho e de saco cheio. Todo o poder, melhor, todo o planeta, estava nas mãos
dos seres mais burros e ignóbeis. De que adiantava ter lutado tanto, ter
sangrado sozinho, ter perdido as pontas dos dedos, se a coisa não tinha
encontrado ouvidos? Max Brod devia mesmo era ter metido fogo nos papéis como o
amigo lhe havia confiado. A humanidade
não merece nada além do estrume. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira: vazia,
somente duas cenouras murchas e uma beterraba ainda mais murcha. Pegou da
garrafa e deu uma golada na água pra ver se enganava a fome. De que adiantava
ter feito tudo que fez se agora, na velhice, não tinha direito sequer a um bife
suculento e uma lata de cerveja?
Não, ele não deixaria
nada de seu neste mundo de merda. Entrou no quarto. Não deixaria nada pra que
os outros se enriquecessem às suas custas. Pegou os óculos sobre a janela, o
violão vermelho e velho junto aos papéis sobre o guarda-roupa. Levou tudo de
volta pra cozinha. Ainda bem que não tinha conseguido gravar um disco, uma
música sequer. Havia aquelas fitas, mas agora o fogo as consumiria rapidamente.
Devolveria tudo novamente ao outro lado, todas as músicas voltariam pro
silêncio, pra trás do silêncio.
A primeira atitude foi
colocar todas as fitas numa bacia de ferro no quintal, juntar alguns jornais
velhos e atear fogo. Como ele pensou, a
coisa não demorou a queimar, no final toda aquela música se transformou numa
gosma verde-escura grudada no ferro.
Voltou pra casa.
Procurou nas gavetas do armário uma borracha. Não demorou a encontrá-la. Puxou
uma cadeira. Sentou-se. Colocou a borracha e os papéis com as letras e
partituras sobre a mesa. Pegou do violão. Calmamente, começou a devolver as
notas pra dentro do bojo escuro. As notas resistiam, queriam existir, soltavam
ganidos como de gansos, mas ele, com os dedos, as empurrava de volta pro outro
lado, pra trás do violão, do silêncio. Ao mesmo tempo, o artista fazia um barulho com a boca, espécie de
rugido como se entoasse um mantra do mal, como se tirasse as palavras do ar e
as enfiasse de volta pra dentro da boca. À medida que conseguia
devolver as notas e as palavras
ao outro lado, ele as apagava na partitura. Não era um processo fácil. Pelas expressões
de seu rosto podia-se ver que sofria, mas estava decidido a fazer a coisa. Era
como um pai que assassina todos os seus filhos antes de se matar.
Na primeira noite
conseguiu descompor apenas uma música. Sentiu-se esgotado, deprimido, se
houvesse lágrimas teria chorado. Mas era homem,
estava velho e seus olhos eram secos.
Passou dias se
recuperando sem mexer nas canções. Quando tentou descompor mais uma, não
conseguiu desfazer senão as últimas notas e versos. Teve de ficar todo o resto
da semana pra descompô-la inteira.
Com o tempo, entretanto,
foi pegando o jeito da coisa. Conseguia devolver as músicas ao outro lado com
mais facilidade. Às vezes descompunha até duas músicas por dia. De qualquer
modo não foi fácil devolver todas as canções, porque ele, ao longo da vida,
havia composto muitas e descompô-las demorou alguns anos.
Dia chegou porém em que
ele havia conseguido mandar todas as combinações de notas e palavras, uma por uma, pra trás do
silêncio. Foi quando teve certeza de que
sua obra estava toda desfeita. Neste dia ele sorriu e, numa espécie de suicídio
derradeiro, entregou ao fogo as folhas em branco e o violão vermelho. Sentiu-se
renovado, embora estivesse ainda mais velho e deprimido.