À meia-noite, bêbado e confuso, comecei minha ronda. Late um cão numa casa de esquina; noutro quarteirão, outro cachorro, maior, rosna irritadiço. Não há pessoas nas alamedas nem nos cafés, apenas vultos sem rostos por todos os lados. Vou subindo a rua, com dificuldade, mas descansadamente, passeando pela noite... Nisto, sou poeta. Encontro o guarda-noturno a olhar para as casas, para os edifícios, para os muros e grades, para as janelas e portões. Cumprimento-o, ele me acusa. Somos dois anjos da noite que se encontram, embora ele vague pela cidade montado em sua motocicleta de cavalaria e com um bom revólver no bolso da jaqueta.
- Temos aqui a arte de se viver da ilusão, meu caro! – ele diz e me solta.
Dou-lhe as costas, ainda ouço o ronco frouxo e vagaroso de sua infantaria de duas rodas a dobrar de ruas, e eu a dobrar de pernas. Continuamos com as nossas rondas distintas, é de nosso ofício. Somos dois homens solitários em meio à cidade grande, ainda por perceber o longínquo barulho de frear dos ônibus numa avenida central, um acelerar de automóvel numa rua secundária, os últimos veículos, sonolentos, em meio às últimas almas humanas.
O metrô para na última estação. Também os maridos tornam às suas felizes residências, embora cercadas por grossas grades de ferro, por protegidos condomínios automáticos e por emaranhados arames farpados com choques elétricos. Cidade grande, fornecedora de ilusões...
Entro no último bar. Bebo, ao guarda-noturno! Vou à última casa do bairro, paro debaixo da penúltima janela do sobrado amarelo depois de tropeçar nos excrementos naturais de uma cadelinha da madame vizinha. Lá, na última casa do bairro, onde dorme e sonha ela, aquela que me fez andarilho sem amor; e de lá estouram-se dois estampidos de revólver – que não saem do bom revólver do outro anjo da noite.
Há vida que acontece nas ruas, solitária. Há vida que acontece dentro das casas, letal. Mas vida certa é a última garoa da madrugada, última.