A
vastidão é triste vista de longe – buraco-ruína de dente. Cachorro morto de
asfalto. ?Quantos cachorros agonizantes já chutou na porta de casa? Esparrame o
pranto no umbral. O poeta inventou o riso para se redimir dos seus suicídios. Esquecer
os cadáveres frescos que traz no dorso. O sol parte todos os dias atrás das
suas costas. ?Quantos poentes podem suportar suas vértebras? Atrás de mim
sempre é ontem. Morri trezentas vezes e trezentas vezes me levantei. Quebraram
todas as minhas pernas de pau. Rasparam minha carne, sugaram todo meu tutano. Arrancaram
meus molares com alicate. Me recomponho feito lagartixa branca de parede. Lagarto
amarelo antes da criação. Fóssil fajuto dos meus ancestrais. Deus é só uma abstração, um coro grego
sussurrou no meu ouvido são. Poucas coisas permaneceram intactas depois do
nascimento, depois que o embrião cresceu retorceu, cuspiu no útero. Tragicômica
as chacinas de criança. A guerra é um método menos perverso de controle de
natalidade, afirmam. Matam mães e pais em potencial. Sem foda
não há cria. Irmãos comeram irmãos e se inventou o incesto. Irmãos deceparam as
cabeças de irmãos e se inventou o homicídio. Quebraram os dentes e se inventou
o riso. Em sociedades primitivas a guerra é menos necessária. Pratica-se o
infanticídio. Crianças são jogadas do colo materno ou esquecidas sem alimentos.
Aqui também tudo está voltando ao tempo
mítico. Perdemos tudo. A população se reduziu a quase nada. Os poucos que
ficaram resolveram se dispersar, quando menos gente por quilômetro quadrado,
mais fácil sobreviver, os alimentos demoram mais a terminar. Ainda assim eu
resolvi ficar com o que sobrou da minha família, ou seja, minha mãe e tentar
reconstruir a vida. Não temos mais casas confortáveis, tecnologia ou comida.
Voltamos a condição de meros coletores e caçadores. E ainda assim a caça é
escassa. A terra ficou infértil por causa dos produtos químicos das bombas. Todo
o conhecimento adquirido se reduziu a cinzas e os avanços médicos, bem,
acabaram morrendo com os últimos doutores. Temos apenas um médico, ele foi um
dos sobreviventes, mas por ironia do destino, ele pertencia a uma família nobre,
seu diploma foi comprado, seus pais faziam questão que ele fosse um doutor,
porém, ele jamais se interessou por medicina. Ele tinha tudo que queria, não
precisava trabalhar e por isso ficava o dia todo lendo livros eróticos. Era
doutor só na placa. Também sou uma das poucas sobreviventes e por um motivo
inexplicável estou viva a mais de cem anos, embora não aparente mais que
quarenta. Minha mãe voltou a ter o prestígio de antes. Nos tempos modernos
ninguém mais dava a mínima para uma curandeira ou uma xamã. Na parede de barro
se estende dois metros de garrafas com ervas dentro, são plantas e raízes de
todas as cores e tamanhos. Minha mãe conseguiu recuperar uma raiz de mandrágora
no meio da ruína, graças a ela agora podemos usufruir do poder desse
alucinógeno e como todos sobreviveriam ao passado sem entorpecer¿ Era necessário
uma distração para nossos sofrimentos. Eu gostava de olhar a mandrágora se
desenvolvendo dentro do pote, seus membros se esparramando na transparência da
água, parecia um líquido amniótico, qualquer coisa poderia nascer dali, um
monstro horrendo, um demente ou uma criança inocente, no entanto, nunca
acreditei na inocência, nada bom poderia nascer de forma tão explícita, mostrar
os órgãos se constituindo de forma tão obscena. Era como ver um feto crescendo
dentro de uma garrafa de vidro. Mãe gostava de contar a história de um menino
calado, um menino gordo, esverdeado e mudo, ninguém sabia ao certo a origem dele,
mas todos desconfiavam, alguns dizem terem visto como ele apareceu. Afirmavam
que ele era uma mandrágora, mas que foi se desenvolvendo tanto e tanto que
acabou por encarnar e criar alma.