Por Vanessa Bencz
“Tu ri como teu avô, menina."
Me acostumei a ouvir isso desde que meus caninos
nasceram, após o suicídio dos dentes de leite. Junto com os meus caninos
grandalhões e pontiagudos, nasceu também a curiosidade sobre aquele avô que não
conheci – separou-se de minha avó antes de meu nascimento.
Ouvi falar pouco sobre este homem chamado José.
Certa noite, em criança, percebi que minha avó conversava com meus pais no
quarto dela. Eles sussurravam. E o sussurro é o tempero dos ouvidos; então, com
a sagacidade que só as crianças têm, esgueirei-me para perto da porta
entreaberta de minha avó, e ouvi o papo.
– José berrava tanto aquele dia, que saiam raios de
sua boca.
Ao ouvir isso de minha avó, entendi que eu teria
dificuldades para dormir. Segurei o gemido de horror na minha garganta, até me
afastar o bastante da porta de minha avó. Depois, deitada na minha cama, ao
lado de minha irmã, contei o que ouvi para ela. Ambas ficamos sem sono, boiando
no terror da lembrança. Lembro-me que ficamos olhando o teto do quarto na
escuridão. O abajur estava apagado, para que ninguém desconfiasse que aquela
informação – que eu havia criminosamente coletado – iluminava nosso pesadelo.
Anos depois, no comecinho da adolescência, comecei
a ter aulas com uma professora que já havia trabalhado para meu avô. Com a
felicidade dos desavisados, comentou que eu tinha o sorriso muito parecido com
o de “seu José”. Me perguntei se eu também seria capaz de jogar raios pela
boca.
Procurei alucinadamente fotos do homem nos armários
empoeirados de minha avó. Encontrei milhões de fotos rasgadas pela metade. Em
todas, aparecia apenas a minha avó, mais jovem. Entendi que, ao lado dela,
provavelmente estava o meu avô. Ela teve o ódio tranquilo e cirúrgico de rasgar
todas as fotos em que seu ex-marido aparecia.
Em algumas fotos, era possível ver que havia
sobrado um braço masculino, uma mão com aliança, um pedaço de terno e gravata,
um cálice de vinho tinto bebido pela metade. Mas seu rosto havia sido
triturado, mutilado com o bisturi da mágoa desta mulher abandonada.
Quando eu tinha 14 anos, ficamos sabendo que o meu
avô havia morrido. E tinha uma homenagem para ele, no jornal impresso. Havia
uma foto dele. Sim, lá estava o meu sorriso. Os caninos malvados em seu rosto
bondoso. Consegui examinar bem a foto, antes que a página do jornal fosse
estraçalhada pela ira – já fossilizada – de minha avó.
Ainda hoje, quando fecho os olhos, consigo ver
detalhes daquela foto em preto e branco. O sorriso com uma vasta variação de
tons de cinza. O sorriso que veio como um embrulho nos meus genes. Mas eu
jamais conseguiria reproduzir o mesmo sorriso, se não tivesse roubado também as
células da inocência e da rebeldia de seu José. E dos caninos avantajados, é claro.
A gente nunca é apenas uma pessoa. Todos somos a
mistura da bondade, dos dentes, das covinhas, das maçãs do rosto e das emoções
de nossos ancestrais. E todos nós carregamos também uma cestinha em que
colocamos outras qualidades e defeitos que encontramos e desenvolvemos no
caminho.
O tempo que passou apenas me confirmou que eu não
deveria usar aparelho para apagar essa memória dentária. Eu jamais imaginei que
revelaria, em meus momentos de felicidade infantil, um homem que mal conheci.
Mas, de qualquer jeito, ele vive dentro de mim e viverá a partir daqueles que
um dia nascerem do meu amor.
Se tudo der certo, colocarei pessoas no mundo que
também me recordarão a partir desses caninos, desse cabelo amarelo e liso, da
floresta verde dos meus olhos ou até da curiosidade, que me faz rastejar pelo
chão feito lagartixa, só para ouvir conversas que não me convém.
Até agora, não precisei soltar os raios que vivem
em minha boca.
Vanessa Bencz é autora do livro Relato do Sol e do blog http://garotadistraida.wordpress.com. Jornalista
por formação e distraída por vocação, adora reparar nos detalhes que só uma
mente distraída poderia capturar.