Por Marcia Barbieri
α[Prelúdio]. Sim. Foi isso. Não me lembro exatamente da posição dos
corpos. Direita, esquerda, sempre fui uma pessoa confusa. Depois a tempestade e
a água vindo e a enxurrada despencando nas zonas abissais do tempo. A outra
orelha do silêncio. A boca escancarada de Deus. Salivei recordando a finitude
da minha carne, a curva perigosa da anca, os meus buracos desviando a atenção
dos homens, as estrias indicando o caminho, os pelos encravados gerando abscessos.
Sinal de sorte, alguns tolos diziam. Cisão, li essa palavra em alguma narrativa
e nunca mais esqueci. Cindida, era assim que eu era desde o começo, quando a
baba povoava o queixo, quando ainda não tinha a noção de que as coisas se
dividiam em períodos e a minha coluna vertebral ainda se prolongava em um rabo.
Às vezes, ainda sinto dores no rabo, como se meu cóccix não tivesse fim, um
apêndice do mundo. Colo o ouvido na parede. Um barulho de faca afiando a pedra. .O aço amortecendo o sonho da rocha coalhando o chão decantando a vida. Vidros
moídos com as mãos inábeis de um louco. Loucos detestam espelhos. Duplos. O
dedo era um só (penso na solidão das masturbações) e eram múltiplas as
impressões digitais. Homens refratários. Olho minha face de relance. Uma
formiga me distrai. Não tenho coragem de me encarar demoradamente. As acnes abandonaram
minha pele. Nada mais recorda a juventude. Aqui a moldura laranja se desprende
do espelho. Tento desencaixar, não consigo, minhas mãos tremem. Escuto o
amolador de facas arrastando seu carrinho. Um dos únicos sobreviventes. Um
resto de cocaína se espreme entre meu rosto e a moldura. Coloco um pouco na
ponta da língua para verificar se é da boa. O cheiro é o início da perdição. O
odor é branco, quase cega. Olho de frente, olho de perfil, de esguelha, meu
rosto se dilata, se contrai numa espécie de pompoarismo. A boca expulsando o
embrião adormecido. Lá fora o mesmo buraco. O chão ocupando espaço. Planta
rasteira fingindo arbusto. Os ossos se amontoando num canto. As moscas gordas
boiando no ar pesado. O nascimento esquizofrênico do sol. Meus joelhos doem.
Não aguento mais ficar agachada para me enquadrar. A vida inteira acocorada
para se desviar do poente. Raios e diâmetros medindo a ausência. A distância é
mais fluída do que podíamos imaginar. Meu corpo sofre a erosão dos ventos. Os
vivos imitam os rituais dos mortos. Um punhal corta o lume fosco da noite.
Risca o mundo ao meio. Xilogravura bem talhada. Anoitece apesar de mim. Amanhece
apesar de Deus. Grafiti nos muros brancos que separam a Vila do resto da
humanidade. O humano cheira a ferro corroído. Desova de peixes. Mãe depois do
parto. Cachorro molhado. Ontem o pescador ficou por quatro horas olhando as
águas baterem nas rochas. O gosto das sementes que acabaram com as lavouras
ainda está flutuando na minha saliva. Examino o mundo e mordo a língua. O meu
cuspe é espesso, caustico, tem gosto de ódio antigo. A ruindade me tornou
múltipla, carne vasta, raiz forte espalhada entre os túmulos de gente estranha.
Meus membros são estrangeiros e distantes dos meus dedos. Não tenho pena dos
homens que lamentam a sorte. A fraqueza me enoja. Não dou conselhos a suicidas.
Ainda assim rezo por eles. Planto folhas de arruda atrás da orelha. Nenhuma
mostra inclinação pra nascer. Me calo. O silêncio assombroso do leite derramando
e espalhando a nata grossa. Camuflando a brasa. Engordurando a madrugada. Embranquecendo
a vista esburacando a mucosa nos desfazendo revirando o intestino assoprando no
seu ânus de merda. As duchas intestinais não resolvem mais o problema, é tua
alma que está contaminada. Tua medula óssea verte mágoas e você não pode
suportá-las. Você nem sequer sabe a diferença entre um risco e um corte
profundo. Você esqueceu sua língua entre minhas pernas e agora é um homem
mudo. Estrangulado pelo silêncio. A
mudez corrompe mais do que a multidão. Seu ventre abaulado disputa espaço entre
as serpentes. ¿Pra que continuar inventando mentiras se já sei de tudo¿ E o
carrasco discorre horas e horas sobre humanismo enquanto você lambe meu cu
feito um cachorro desesperado. Você sabe que tudo deu errado, você não está
mais no controle. Nunca gostei de dormir com filósofos. Entre uma foda e outra
metafísica furada. Pede desculpas pelo prazer que não me deu. Sou bicho, é só
isso que quero ser, não tente me tornar menos animalesca. Não tente explicar um
prazer furtado para uma cadela. A língua daquele filósofo filho da puta não é
capaz de me proporcionar orgasmos. Ao contrário, sua língua densa me entristece
me empurra pra fora do mundo e me rotula de mulher pública. Minha vagina um
buraco negro, uma anti-matéria, um nada ancestral. Não nascer é melhor do que
viver no uivo. Horas e horas de cálculos de latitudes e longitudes, nomes de
constelações, estrelas em formas de animais terrenos, hidra cão urso escorpião,
uma astronomia de abismos. Como esquadrinhar minha buceta sem sublimar-desaparecer?
α avistei
homens chupando com desespero (ou seria fome?) as falanges de um primata,
estavam em roda, uma fogueira esquentava o olho vesgo da madrugada.