6 de mar. de 2012

A puta - I

Por Marcia Barbieri                                                         

α[Prelúdio]. Sim. Foi isso. Não me lembro exatamente da posição dos corpos. Direita, esquerda, sempre fui uma pessoa confusa. Depois a tempestade e a água vindo e a enxurrada despencando nas zonas abissais do tempo. A outra orelha do silêncio. A boca escancarada de Deus. Salivei recordando a finitude da minha carne, a curva perigosa da anca, os meus buracos desviando a atenção dos homens, as estrias indicando o caminho, os pelos encravados gerando abscessos. Sinal de sorte, alguns tolos diziam. Cisão, li essa palavra em alguma narrativa e nunca mais esqueci. Cindida, era assim que eu era desde o começo, quando a baba povoava o queixo, quando ainda não tinha a noção de que as coisas se dividiam em períodos e a minha coluna vertebral ainda se prolongava em um rabo. Às vezes, ainda sinto dores no rabo, como se meu cóccix não tivesse fim, um apêndice do mundo. Colo o ouvido na parede. Um barulho de faca afiando a pedra. .O aço amortecendo o sonho da rocha coalhando o chão decantando a vida. Vidros moídos com as mãos inábeis de um louco. Loucos detestam espelhos. Duplos. O dedo era um só (penso na solidão das masturbações) e eram múltiplas as impressões digitais. Homens refratários. Olho minha face de relance. Uma formiga me distrai. Não tenho coragem de me encarar demoradamente. As acnes abandonaram minha pele. Nada mais recorda a juventude. Aqui a moldura laranja se desprende do espelho. Tento desencaixar, não consigo, minhas mãos tremem. Escuto o amolador de facas arrastando seu carrinho. Um dos únicos sobreviventes. Um resto de cocaína se espreme entre meu rosto e a moldura. Coloco um pouco na ponta da língua para verificar se é da boa. O cheiro é o início da perdição. O odor é branco, quase cega. Olho de frente, olho de perfil, de esguelha, meu rosto se dilata, se contrai numa espécie de pompoarismo. A boca expulsando o embrião adormecido. Lá fora o mesmo buraco. O chão ocupando espaço. Planta rasteira fingindo arbusto. Os ossos se amontoando num canto. As moscas gordas boiando no ar pesado. O nascimento esquizofrênico do sol. Meus joelhos doem. Não aguento mais ficar agachada para me enquadrar. A vida inteira acocorada para se desviar do poente. Raios e diâmetros medindo a ausência. A distância é mais fluída do que podíamos imaginar. Meu corpo sofre a erosão dos ventos. Os vivos imitam os rituais dos mortos. Um punhal corta o lume fosco da noite. Risca o mundo ao meio. Xilogravura bem talhada. Anoitece apesar de mim. Amanhece apesar de Deus. Grafiti nos muros brancos que separam a Vila do resto da humanidade. O humano cheira a ferro corroído. Desova de peixes. Mãe depois do parto. Cachorro molhado. Ontem o pescador ficou por quatro horas olhando as águas baterem nas rochas. O gosto das sementes que acabaram com as lavouras ainda está flutuando na minha saliva. Examino o mundo e mordo a língua. O meu cuspe é espesso, caustico, tem gosto de ódio antigo. A ruindade me tornou múltipla, carne vasta, raiz forte espalhada entre os túmulos de gente estranha. Meus membros são estrangeiros e distantes dos meus dedos. Não tenho pena dos homens que lamentam a sorte. A fraqueza me enoja. Não dou conselhos a suicidas. Ainda assim rezo por eles. Planto folhas de arruda atrás da orelha. Nenhuma mostra inclinação pra nascer. Me calo. O silêncio assombroso do leite derramando e espalhando a nata grossa. Camuflando a brasa. Engordurando a madrugada. Embranquecendo a vista esburacando a mucosa nos desfazendo revirando o intestino assoprando no seu ânus de merda. As duchas intestinais não resolvem mais o problema, é tua alma que está contaminada. Tua medula óssea verte mágoas e você não pode suportá-las. Você nem sequer sabe a diferença entre um risco e um corte profundo. Você esqueceu sua língua entre minhas pernas e agora é um homem mudo.  Estrangulado pelo silêncio. A mudez corrompe mais do que a multidão. Seu ventre abaulado disputa espaço entre as serpentes. ¿Pra que continuar inventando mentiras se já sei de tudo¿ E o carrasco discorre horas e horas sobre humanismo enquanto você lambe meu cu feito um cachorro desesperado. Você sabe que tudo deu errado, você não está mais no controle. Nunca gostei de dormir com filósofos. Entre uma foda e outra metafísica furada. Pede desculpas pelo prazer que não me deu. Sou bicho, é só isso que quero ser, não tente me tornar menos animalesca. Não tente explicar um prazer furtado para uma cadela. A língua daquele filósofo filho da puta não é capaz de me proporcionar orgasmos. Ao contrário, sua língua densa me entristece me empurra pra fora do mundo e me rotula de mulher pública. Minha vagina um buraco negro, uma anti-matéria, um nada ancestral. Não nascer é melhor do que viver no uivo. Horas e horas de cálculos de latitudes e longitudes, nomes de constelações, estrelas em formas de animais terrenos, hidra cão urso escorpião, uma astronomia de abismos. Como esquadrinhar minha buceta sem sublimar-desaparecer?


α avistei homens chupando com desespero (ou seria fome?) as falanges de um primata, estavam em roda, uma fogueira esquentava o olho vesgo da madrugada.