25 de fev. de 2012

Luz vermelha que se azula

Por Nilto Maciel 

Quase todo dia Dirceu saía de casa à tarde e só voltava à noitinha. Sentava-se num banco da Praça do Ferreira para sentir no rosto o tempo em que aqueles ventos lhe pintavam a alma de ventura. E via, extasiado, o rebolar-se das ancas das moças faceiras. “Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração”. Em casa, Marília sentava-se no sofá para ver a novela da tarde na televisão. Nos intervalos, chamava Isaura e dava ordens: fosse ver cartas e cobranças na caixinha de correio; passasse pano molhado no chão; preparasse o jantar. Dirceu perambulava pelas ruas do centro, a ver navios ancorados nos olhos das meninas. Conhecia todas as comerciárias, que cumprimentava sorrindo, e lhes dava beliscões nos braços roliços. Vez por outra comprava cuecas, lenços, vidrinhos de perfume. Isaura se esfalfava de tanto ir e vir. Dona Marília se inquietava no sofá e corria para o escritório do marido. Vai, menina, deixa de ser lerda. Abria gavetas, como se abrisse pernas; folheava livros, como se desvendasse vaginas. Nunca, porém, soube onde se escondia o caderno secreto de Dirceu. Seria um diário? Naquela idade escrevendo diário? Só se estivesse ficando doido. Ao voltar, ele primeiro vistoriava o escritório. E gritava: Isaura, você andou mexendo nas minhas coisas? A moça se apequenava mais ainda. Encolhia-se toda, como se quisesse desaparecer. Vá embora. Fechava a porta, abria a gaveta, retirava o caderno de capa azul, lia uns trechos. “Eu tinha apenas 25 anos de idade e toda a irresponsabilidade do mundo. Por toda parte só se ouviam louvores ao Brasil e à seleção de futebol. O tri-campeonato se aproximava”. Fazia tudo ao contrário, aborrecido: guardava o caderno, fechava a gaveta, abria a porta. Marília compulsava álbuns de fotografias. Olhe os meninos, Dirceu, como eram lindos! É, mas hoje são homens e mulheres feitos e criam seus filhos. Deixe de lembranças bestas. E se afundava no sofá, cansado. Não ia tomar banho? Ia, quando sentisse vontade. Isaura passava por eles a caminho do jardim. Não passaria dele, do portão. E nele não se perderia, entre as poucas roseiras. Nunca saía de casa sem autorização ou mando. Veja se os passarinhos sujaram tudo de novo.          
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O que Dirceu anotava no caderno ninguém sabia, porque a cada frase nova de sua história se seguiam outras de alguma prosa estranha: “Evelina nunca mais a vi nem verei. No pátio do colégio os padres corriam em gritaria. Meninos se agitavam ao redor de bolas”. O caderno voltava ao fundo da gaveta e Dirceu se punha a manusear um dicionário. “Embriagado, saí pelas ruas sem rumo. Queria aventuras de carnaval. Servia qualquer mulher nova”. Apertava a cabeça, como se fosse chorar. Iam para anos aquelas anotações, aquele tormento. Almoçava, ligava a televisão. O presidente da República se preparava para conhecer Moscou. Marília coçava a cabeça, olhava de soslaio para o marido. Vai sair hoje? Ele se fazia de desentendido: parece que viaja amanhã. Isaura passava diante deles, pano pendurado na mão. No exato momento em que a repórter bonita falava. Vê se desaparece da sala, menina.
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Dirceu saía da Praça do Ferreira pela Rua Guilherme Rocha no rumo da Praça José de Alencar. Topava com ambulantes, livrava-se de transeuntes e bêbados, postava-se diante do teatro. Ainda assistiria a uma peça de fama com Marília. Bastava criar coragem. Sai do meio, velho. Meninos pediam moedas. Meninas coçavam cabeças cheias de piolhos. Dirceu deixava a praça e alcançava a calçada da Rua Liberato Barroso. Ia de novo para a Praça do Ferreira. Em casa, Marília caçava borboletas no jardim. Vem cá, Isaura, vem ver que maravilha. O sol da tarde queimava os cabelos claros da sertaneja. Fica aqui, cuida das plantinhas, que eu preciso ver uns álbuns. Abria a porta do escritório, trancava-se e se punha a folhear dicionários. Num papel lia: “Os pássaros bicaram minha saudade. Por acaso encontrei a filha de Ester na rua. Vestia minissaia colorida, de carnaval, não usava sutiã e se abraçou a mim. Nos matos andam perdidos estranhos homens de palha. Você é a Evelina, aquela menininha magra e feia? Como cresceu! Espantalhos de outros tempos. Ela cambaleava. Andou bebendo? Só um pouquinho? E está indo para onde? Para qualquer lugar. Eu vou para o clube. Então vamos juntos”. Ora, ali estava o pecado. Quis retirar o papel de dentro do livro. Ou Dirceu estaria preparando uma armadilha? Fechou o livro grande, tentou abrir a gaveta. Por que aquela coisa fechada a sete chaves?
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De volta para casa, Dirceu passava pela padaria e comprava pães quentes. Isaura se afogueava diante da panela. Marília se dedicava às fotos e fofocas de uma revista, esparramada no sofá. Você sabe daquela sua prima de nome Ester? Ele nem olhou para ela. Chamou a doméstica para receber os pães. Para que desenterrar defunto? Ah! ela morreu? Faz tempo. Tinha uma filha chamada Evelina? Ele se perturbou e caminhou rápido para o banheiro. O que queria dizer Marília? Trancou-se e urinou pouco. Aquela conversa o deixava nervoso. Como não falar mais naquilo? Precisava inventar logo uma história maravilhosa. Um assalto no centro. Saiu a puxar o zíper da calça. Você não sabe o que vi agora, Marília. Pois quase morri de susto. Dois assaltantes passaram por mim correndo. Pôs-se a apimentar a história. Olhos arregalados, Marília examinava aquele homem mentiroso. Agarraram o homem por trás. Isaura apareceu: iam jantar pão com sopa?
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Dizia para Marília que escrevia um romance. Ora, você nunca foi disso. Passou a vida toda lendo códigos. Sem ter o que fazer, pensei em escrever uma história. Estou inventando tudo. Nada vai ser real. Saía depois do almoço e só voltava à noitinha. Passava horas a perambular pelas praças e ruas. Fui à Gentilândia. Fazia tempos que por lá não aparecia. Está tudo ou quase tudo como antes. As mesmas casas, as mesmas árvores. Talvez as mesmas pessoas. Isaura se apresentava calada: falta algum tempero? Acabou-se o sol. Riam. O sol não, talvez o sal, menina maluca.
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Alta noite, Dirceu acordava, abria a geladeira, bebia água e corria para o escritório. “O que aconteceu não lembro mais. Bebemos muito e dançamos”. Marília dormia ou fingia dormir. Do dicionário aberto saltavam palavras de todos os tamanhos. “Os pequenos seios dela roçavam em meu peito”. Talvez fosse melhor escrever “alisavam meu peito”. Olhava pelo buraco da fechadura. Talvez Marília o espionasse. “Eu pensava em minha prima Ester. E Evelina só tinha 15 anos. Quase uma menina. Não podia, não devia me envolver com ela. Mas nos envolvemos”. A caneta suava a mão. Um grito na rua lembrava os perigos soltos na cidade. “A noite avançava, todos estavam bêbados, ninguém via nada. Aleguei vontade de descansar e saí no rumo de umas árvores”. Mais seca a boca. Mas, se fosse à sala de jantar, Marília acordaria. “Casais se abraçavam, se beijavam, se despiam. Sentei-me no chão, junto a um muro. Não havia luz por perto. E ali tudo se consumou”. Como tirar aquilo da memória? Havia anos aquele remoer contínuo de pequenos gestos. “Chegada a manhã, ela dormia no chão. Acordei-a. Precisávamos ir embora”. Precisava rasgar aquilo, queimar aquele caderno, aquela confissão medonha. “E nunca mais a vi. Soube de sua morte um ano depois. Escorraçada de casa pelo pai, refugiou-se na casa de uma amiga mais velha, sustentada por um homem casado. E lá tentou praticar aborto. No entanto, o bebê nasceu. Ela, coitada, não suportou o suplício, a hemorragia”. A sede crescia. Vontade de engolir a noite, a Lua, a chuva que viesse. “Fui embora pra bem longe. Ninguém nunca soube do nosso encontro carnavalesco, acredito. Porque ninguém jamais me falou disso. Nem Ester, nem os filhos dela, nem meus pais. Agora, passados tantos anos, quero saber de minha filha. Mas como e para quê? E se ela for essa menina que me chama de Seu Dirceu? Se for essa Isaura que cuida do nosso jardim, prepara nossa sopa, lava minhas cuecas?” Os olhos de Dirceu se fecham. Sente dores na nuca, no peito, na alma. E se tudo aquilo fosse mentira? Se estivesse apenas imaginando tragédias? Ainda viu uma luz vermelha que se azulava e se amarelecia e se esverdeava. E não teve tempo de queimar o caderno. Nem de pedir perdão a si mesmo.

 * Este é o quarto  conto da primeira parte do livro Luz vermelha que se azula, de Nilto Maciel.