6 de nov. de 2011

Caninos

Por Marcia Barbieri

“(...) Quero/ morrer como cão, fitando/ as coisas transparentes.” Rodrigo de Haro


Olho fixamente para sua pelagem, ela tem a cor rugosa e irrisória de todas as tardes tristes de abril.

Você fugiu e eu ainda remendo as madrugadas para enganar a agonia da brancura das noites sem sonhos. Não havia nada de errado, a não ser o tempo esfolando a carne amarga/ transparente dos dias. Os gatos me olhavam com seriedade muda e expressão intransponível. Catatônicos. Nas ruas, matilhas dilaceravam as manhãs. Andarilhos lavavam as calçadas com púrpura e fezes.

Vermes rompem da frágil estrutura da bolha de sabão, insinuando um retorno improvável. A volta ao mundo em oitenta dias. Círculos reproduzindo falsos laços. Nós cegos. Eu acreditei fielmente que um dia você entraria por aquela porta e lamberia minhas mãos como um cachorro arrependido depois de remexer a carniça. Tentei provar que sua procura é hilária, ninguém apalpa a felicidade feito torrões de açúcar ou a morde como a polpa de uma manga madura. Você me faz recordar cantigas de roda, piões girando em noite de ventania, a ingenuidade tola das crianças brigando com suas sombras, como se elas tivessem vida própria, fossem deuses, gigantes ou demônios. Empunham suas espadas, cavalgam cavalos de madeira, disseminam populações. Um dia então, desistem de se desvencilhar e encolhem, enrolam seus corpos – cobras depois da espera do bote, filhotes peçonhentos mortos no ninho.

Cólera. Te espero e observo os cavalos brancos trotando no desespero mudo do seu rosto, enquanto suas trompas uterinas cultivam fetos e merda de outros homens. Confio como um dono que se submete a solidão cansada da língua de seu cão, que no caminho tortuoso furtara a obviedade de muitas outras mãos. Folheio e encontro os sapatos dos mortos de Auschwitz.