13 de out. de 2011

A Literatura em xeque - Malagueta #18

Por Daniel Lopes

Desde que comecei a me interessar por livros, lá pelos quinze, dezesseis anos, tenho ouvido falar de crise na Literatura. Não consigo enxergar nisto um problema. Pra mim, não só a Literatura, mas a Arte em geral se alimenta do conflito. Pra que diabos um cidadão perfeitamente conectado à sociedade e ao mundo que o cerca se trancaria num quarto, isolado por dias e dias, para escrever um livro que o esgota? Quem está contente com a vida, vive a vida. Para aqueles que são mais de um e são sempre palco de contradição a Arte é muitas vezes o único caminho e a única salvação. Só acredito em quem escreve assim. Sou como Nietzsche: “De tudo quanto se escreve, só me agrada o que alguém escreveu com sangue. Escreve com sangue e descobrirás que o sangue é espírito.” A vida para escritores deste calibre, quase sempre, é só um instrumento para a Poesia. É de escritores assim, com este amor pela Literatura que estamos precisando. Ela, a Literatura, é uma deusa exigente. Não vejo crise nas Artes, vejo sim, muita coisa ruim sendo produzida, publicada, assimilada, estudada e passada adiante, numa tramoia imensa.

Provavelmente vou ser tachado de reacionário por esta afirmação, mas, a meu ver, as vanguardas do início do século vinte mataram a Arte. Como assim? O que este idiota está falando? – Você, leitor, deve estar vociferando. Calma! Vamos por partes, como diria Jack. Um bocado de gente sabida já tratou disso. A princípio, as vanguardas cumpriram seu papel. Romperam com um modelo artístico que já não correspondia ao mundo no qual as pessoas se movimentavam. Muitos artistas e muitas obras foram veementemente vaiados por isso. O problema é que o pensamento burguês aprende fácil e transforma tudo em massa de manobra. Quando os donos do capital descobriram que o legalzinho era o diferente, a vanguarda, passaram a vaiar tudo o que pudesse soar tradicional, como um escritor que escreve com palavras, ou um músico que compõe com notas musicais, por exemplo. A vanguarda é uma necessidade quando o código estabelecido não consegue suportar o mundo que o artista quer exprimir. Sem essa verdade, não passa de firula. É por essas e outras que muito do que é produzido e vendido sob o rótulo de Arte atualmente, não passa da mais descarada impostura.

Quando o código se volta excessivamente sobre o próprio código deixa de comunicar para o mundo e se torna coisa para uns poucos iniciados. A Arte produzida assim é uma coisa científica, estéril, morta. Não quero dizer que o trato com o código não seja essencial, claro que é. Mas o código é um meio e não um fim. O fim deve ser sempre o fogo, o magma, o Essencial Humano. Arte é pulsação, vida, Eros. Leiam Song of Myself de Walt Whitman em voz alta e vocês vão entender do que estou falando. Agora não me venha escrever a palavra lixo com dezenas de palavras luxo e me dizer, por meio de um tratado de semiótica, que a estética deve fruir daí para o meu espírito ignóbil. Eu, que também escrevo, quero escrever um livro tão vivo que se acaso o transpassássemos com uma faca, todas as palavras escorreriam densas como sangue. E, ao abrirmos o volume depois, as páginas estariam em branco.

Escreve mal quem escreve pelas teorias e pelo que está na moda nas universidades: gênero epistolar... literatura carcerária... periferia das grandes cidades... Internetês... Essas modas passam cada vez mais rápido. Nada disso, se não vier do peito do escritor, vai ficar. É com o coração que se procuram os temas. É o peito quem vai dizer: isso faz parte de você. Qual é a essência da grande Arte? Toda obra marcante é profundamente subjetiva. Parte de um mergulho tão profundo do artista em sua Alma que ele (O Artista) acaba por tocar a Alma do mundo. Em algum lugar dentro de nós, a nossa essência e a essência do mundo são a mesma. Eu vejo Dostoievski em cada palavra dOs irmãos Karamazov. Chego a conversar com ele e imagino a dor das noites brancas da Rússia e da Sibéria. Não há distância entre o corpo e o texto. Quem escreve só com o cérebro é um mau escritor. Quem escreve só com as mãos é um mau escritor. É com o corpo todo e com a vida, e com a paixão, e com o amor que se escrevem os grandes livros. Eu vejo um universo e um modo de enxergar o mundo dentro de cada grande livro. Rimbaud não compôs Uma estadia no inferno assistindo Discovery Chanel, foi necessário queimar as mãos nas chamas do Diabo. William Blake não compôs os ditos do Inferno assistindo Discovery Chanel. Foi necessário percorrer os caminhos do excesso para chegar ao palácio da sabedoria.

Estou farto de ler textos criativos, mas sem vida. Estou farto de ler textos inteligentes, mas sem vida. Jack Kerouac percorreu os Estados Unidos numa jornada cósmica e morreu de beber quando percebeu que não havia sentido por mais que ele procurasse. A coisa não estava na estrada, não estava na amizade, não estava na escrita, não estava em lugar algum. Todos querem ser escritores, posar de escritores, mas quem está disposto a se queimar assim?

Tirando os impostores, que são muitos, também tem muita gente escrevendo do fundo do espírito. Mas eles encontram a luz de pelo menos meia dúzia de leitores? Alguns encontram, outros não. E aí vem outra questão pertinente no cenário cultural do Brasil hoje. Mas antes de tratar a respeito, vamos voltar um pouco no tempo: "Em 1837 Liszt deu em Paris um concerto, onde se anunciava uma peça de Beethoven e outra de Pixis, obscuro compositor já então considerado de qualidade ínfima. Por inadvertência, o programa trocou os nomes, atribuindo a um a obra de outro, de tal modo que a assistência, composta de gente musicalmente culta e refinada, cobriu de abraços calorosos a de Pixis, que aparecia como de Beethoven, e manifestou fastio desprezivo em relação a esta, chegando muitos a se retirarem".


O trecho acima está no livro Literatura e Sociedade, do professor Antonio Candido, página 32 e serve para ilustrar o tamanho da importância do reconhecedor de talentos, do cara que se destaca do grande público e da massa e tem a capacidade e a sensibilidade de sentir e perceber o diferente. Talvez a figura que falte no cenário cultural brasileiro não seja a do escritor de talento, do músico de talento, ou do pintor de talento. Talvez o que falte seja o cara que tenha tempo, paciência, boa vontade e generosidade para trazer à tona o trabalho de artistas ainda obscuros. Quando falta esse cara, honesto, bem intencionado e imparcial, as panelas e os conchavos tomam conta e muita gente boa acaba ficando de fora, enquanto outros, cujas obras têm qualidade questionável acabam em evidência, mais por questões políticas que artísticas.


O que seria de Manoel de Barros sem a resenha de Millor Fernandes no Pasquim? O que seria de Jean Michel Basquiat, sem o artigo de René Ricard? Não estou dizendo que Manoel de Barros e Basquiat não teriam alcançado o sucesso sem as críticas de René e Millor, mas que as coisas teriam sido muito mais difíceis, lá isso teriam. Sem dúvida.


Enquanto todos os grandes prêmios musicais e toda a grana estão indo, neste exato momento, para Ivete Sangalo e Claudia Leite, o jovem negro se tranca no quarto, imagina estar sozinho, compõe ali o mais belo chorinho para ninguém. A mulher amada não se interessa, as gravadoras não se interessam, mas Deus desiste de acabar com o mundo, by fire, por causa da sua canção. Arcano da salvação. Todos os dias um artista fracassado salva o mundo. Todos os dias um artista fracassado se livra dos tentáculos e dos fios invisíveis e faz piada do caos e do diabo. Só quem trabalha assim é digno de ter o nome escrito entre as estrelas.


Daniel Lopes, paulistano. Lançará o livro Pianista Boxeador no próximo dia 28/10/2011, na Casa das Rosas.