11 de set. de 2011

Supernova

Por Rodrigo Novaes de Almeida

Josué sentiu, naquela segunda-feira, um mal-estar crônico. Tentou definir melhor, localizar os sintomas, e teve dificuldades. O peito doía, a cabeça pesava, imaginou-se febril, embora a temperatura do corpo fosse normal, a mente trabalhasse sem grande esforço e o ar entrasse e saísse dos seus pulmões como nas demais segundas da sua vida.

Pensou estar diante de um princípio de infarto, mas na sua idade este teria sido fulminante. Mesmo assim, fez os exames de praxe. Descartado o infarto, perguntou-se sobre o motivo daquele sentimento. Já não era um mal-estar crônico amorfo, era angústia. Lembrou-se do encontro que tivera, dias antes, com uma mulher por quem fora apaixonado. Era a primeira vez que a encontrava acompanhada do novo namorado. Pensou que poderia ser a angústia algum resquício de sentimentos mais conturbados travados em feroz batalha campal em obscuros estádios do seu inconsciente. Mas descobriu-se então feliz por ter visto a felicidade naquela mulher por quem um dia fora apaixonado. É oportuno dizer que o nosso personagem chegou a tão peremptória constatação após analisar, inclusive, os fatores subliminares daquele novo relacionamento. O tal namorado novo era muito parecido com o pai dela, daí a promessa de longevidade e sucesso que o casal poderia ter, Electra que não nos escute. Pesa o fato de o nosso personagem não ser mais apaixonado por ela, caso contrário seria difícil para nós acreditar em tamanha nobreza e serenidade ao dizer-se feliz diante de uma felicidade como essa.

Deixemos, contudo, Electra e o novo casal para trás e voltemos ao angustiado Josué. Nem infarto, nem dor-de-cotovelo, portanto. Josué estava cara-a-cara com a esfinge, encarando-a e ao seu enigma. E a esfinge não facilitava nem um pouco e divertia-se com o jogo.

Cansado, Josué resolveu sair dali e repousar seus pensamentos em outra esfera, mais propícia a devaneios e esquecimentos. As imagens saltavam. Às vezes cruzadas, outras vezes sobrepostas. Umas vinham translúcidas, outras obtusas. Todas, porém, carregadas eletricamente, epifenômenos de uma materialidade perversa. E, de repente, não mais do que de repente, o mundo parou, o verbo se desfez em farsas e zombarias, o silêncio curvou-se sob efeito de alguma nova lei matemática e os átomos se cristalizaram na imagem de um jovem sorriso feminino. Eureca. A esfinge regressou para o seu sono de milênios e Josué, bem… Josué pôde dar outro nome para a sua angústia.

As máquinas do mundo voltaram a trabalhar e o nosso personagem recorreu à memória para traçar o percurso vencido até aquele momento de revelação. Lembrou-se das conversas que tivera com a dona daquele sorriso. Lembrou-se de cada sorriso dado por ela espontaneamente como oferendas aos deuses para tornar os dias menos exatos. Lembrou-se de como se sentia. Lembrou-se ofegante, embora não lhe faltasse o ar. Lembrou-se tonto e febril, enquanto ela falava de príncipes e carruagens e cavalos brancos e anacrônicos. Lembrou-se de muito mais. Lembrou-se que ele era onze anos mais velho que ela, que não era um príncipe e que pensara certa vez em dizer para ela que estava mais para revolucionário, como Che, só que sem barba porque barba coça bastante e ele jamais conseguiu deixar uma por muito tempo, que, como Dom Quixote a lutar contra moinhos de vento, ele escutava as suas palavras mas só tinha espaço para o encantamento, que o aparelho nos dentes que ela usava dava um charme todo especial na hora da oferenda aos deuses, que a forma como ela brincava com as pontas dos cabelos o distraía em narrativas misturadas com cânfora e que, finalmente, dois dias sem vê-la significavam dois dias sem ter que sentir aquela dor no peito, aquele peso na cabeça, aquela febre de estar novamente apaixonado.

Agora, Josué precisa morrer.


Conto publicado no livro Rapsódias – Primeiras histórias breves, Ed. Multifoco, 2009)