Por Márcia Barbieri
Primeiro era o verbo, depois vieram os pronomes, as preposições, as conjunções, as mesóclises, os pleonasmos, as figuras de pensamento, o narrador e ninguém voltou a se entender. Inventaram um monte de parafernália que só serviu para complicar a vida dos escritores e da crítica literária. De todos os problemas o narrador é o único aparentemente insolúvel.
O narrador mais famoso de todos os tempos foi Jesus e suas parábolas (cá pra nós, até hoje muita gente não entende), não sei se Ele manjava de arquitetura, mas com certeza era PHD em literatura, as suas palestras viviam cheias. Walter Benjamin vangloriou a figura do contador, o colocou nas alturas. Enfim, o narrador era palpável e estava centrado na figura do contador de histórias. O mundo começou a evoluir, inventaram o papiros, a grafia, a imprensa, inventaram até os críticos de arte. A coisa começou a ficar séria. O narrador ganhou status, foi pra terceira pessoa, se elevou foi pra primeira. Não contente se misturou com fluxo de consciência, autor-personagem, memória, quase biografia. Aventurou-se por tudo, vira e mexe, quando dou por mim, escuto um narrador em off contando minha vida, Ele e suas manias de onisciência. O narrador estava quase se metamorfoseando em Deus.
No entanto, isso evidentemente é passado, precisamos encontrar uma forma de desaparecer com o narrador. Estamos em pleno século XXI e ainda não nos livramos dessa voz indesejada e ultrapassada? Precisamos de um novo movimento literário, quem sabe esse novo movimento literário não seja exterminar o narrador? Além disso, daria um belo livro de ficção, poderíamos contratar um escritor mecatrônico: “O exterminador do narrador”. Talvez, acabaríamos com a aflição de muitos escritores. Eles andam desesperados, a morte assusta, e se minha obra não for original e durar menos do que eu? Eles estão se esquecendo que o óbvio, às vezes, cai muito bem. Por mais antiga que seja a invenção da roda, ela ainda é capaz de se renovar. Como me encantei hoje com um aviãozinho feito de sucata, as hélices virando apenas com a força do vento, ah, esse ar tão viciado!
Os escritores andam pisando em ovos para escrever uma história. Como escrever sem deixar rastros da influência dos realistas ou das vanguardas? Ser concretista hoje soa absurdamente retrógrado. Não se trata mais de ter ou não um estilo. Um primeiro passo para não ser excluído das rodas literárias é fingir ser um físico ou saber tudo sobre filosofia. É chique ser sui generis. Se não sabe nem como calcular a velocidade média, desista, vá ser matemático, pois com certeza será um escritor medíocre. Entende a coisidade da coisa de Heidegger? A coisa pra você só não está preta porque podemos ser tachados de politicamente incorretos.
Primeiro passo para se ter estilo é não fazer história com começo, meio e fim, isso todo mundo sabe. Agora para se ter um baita de um estilo é preciso mergulhar em experimentalismos linguísticos, mesmo que isso resulte em um coito interrompido. Como forçar uma natureza que não é a nossa? James Joyce precisa ser superado, caso contrário, o que a nossa geração fez pela literatura? Nada, somos meros plágios de outros tempos. Casca oca. Escribas e placebos. A literatura virou um campo de masturbações literárias. Todo esse esforço é para mostrar para o crítico que você não é um escritorzinho qualquer, mas está à frente do seu tempo, você é o mega escritor pós-pós moderno. Entende de letras e ainda consegue mergulhar de cabeça quando o assunto é mecatrônica, engenharia, biomedicina, física, filosofia. Narrar ou não narrar? Se Shakespeare estivesse vivo com certeza esse seria o dilema de Hamlet.
Não estou defendendo uma literatura vazia, que não se valha de outras áreas do conhecimento. Também não sou contra os experimentalismos, ao contrário, me agrada bastante, me instiga. Estou defendendo que a literatura encontre sua voz, mesmo que dissonante, rouca, disléxica. Lembro de um amigo que costuma dizer: “Não me importo com isso, eu quero escrever minhas histórias, da forma que sei, da forma como elas aparecem, eu não posso fazer isso?”. Essa é uma das perguntas mais bonitas que já ouvi. Escrever com sinceridade. Sim, meu amigo, você pode. Todos nós podemos. Se isso é Literatura? Não sei, vivemos num tempo obscuro, caótico, fragmentado, um verdadeiro campo minado.